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9 abril 2014

Antonieta Garcia
Quadragésima – A encomendação das almas

O Inverno despede-se. Não tarda, estão aí as andorinhas anunciando o calor e os rituais mágicos de celebração da Primavera. Aos deuses se oferecerão os primeiros frutos da terra, os primeiros animais dos rebanhos, as primícias. Em comunidades agrárias, sabe-se que a Terra é mãe procriadora incansável. É deusa que gera vida. E o mundo rural  invoca protetores, reza e celebra cultos que previnam e assegurem o devir favorável da natureza, o bem-estar comunitário.
Cerimónias sucedem-se durante este período. Muitas são alheias às celebrações religiosas institucionais.
A “Encomendação das Almas” entoada na Quadragésima, em muitos lugares da Beira, é um exemplo. À noitinha, mulheres percorrem caminhos aldeãos, e em “sítios altos”, sagrados, na torre, no adro da igreja, junto ao cemitério… rogam pelas almas. No trajeto, enganam o frio da noite e afinam a voz com uma jeropiguinha que o casaco ou o xaile possam ocultar.
Este ano, no Alcaide, na Capinha, na Fatela, no Souto da Casa…cânticos semelhantes exaltam O Santíssimo Sacramento. Lembram: Ó almas do outro mundo, / Estais no céu em grande aumento. //. (…). Acordai, se estais dormindo,// Nesse sono em que estais; / Eu também estava dormindo / E acordei aos vossos ais.//. Acordai, se estais dormindo,/ Nesse sono em que estais;/ Rezemos um Padre-Nosso / Por alma de mães e pais.// Acordai, se estais dormindo,/ Nesse sono tão profundo; / Rezemos um Padre Nosso / Às almas do outro mundo.
Suplicam, pois, a libertação das almas. Invocam ainda São Pedro, o Espírito Santo, o Padre Eterno, evocam os suplícios da Paixão-sacra, reforçam o pedido ao …Salvador do mundo,/ Que está sacrificado numa cruz, / Que nos leve para a glória / Para sempre, amém Jesus!
Composições transmitidas de boca a orelha, os textos da “Encomendação das Almas” pouco diferem de lugar para lugar; alguns preservaram sequências enigmáticas que motivam reflexão. Na essência, o crente reza para que as preces sejam atendidas, para que as almas do Purgatório ascendam ao céu e todos possam fruir o Paraíso, a glória.
É o imperativo: “Acordai que causa estranheza. Repousam as almas, os mortos.
Acordai, porquê? E se dormem, que sentido atribuir aos versos: “Eu também estava dormindo/ E acordei aos vossos ais”? Quem é este eu? Que “ais” o despertaram?
Num texto sagrado, a salvaguarda da palavra exata é indispensável. Qualquer desvio de linguagem pode ser nefasto e, por isso, se repetem vocábulos, versos, sem a preocupação da demanda de sentido para o considerado insondável, oculto, ininteligível. As palavras têm poder, e devem ser proferidas tal qual foram recebidas dos antepassados, para garantir o efeito desejado. Não será, pois, pura casualidade, uma tentativa de substituição no texto que ouvimos. Vislumbrado o insólito do apelo “acordai”, algumas intervenientes na cerimónia, converteram-no em “ricordai”, palavra fonologicamente próxima. Porém, esta opção a vulgarizar-se, a impor-se, esbaterá o indício presumível da função primitiva do ritual. Acordar alvitra um tempo em que eram celebrados cultos remotos à Grande Mãe, a divindades da fecundidade, destinados a aumentar o rendimento da terra, a assegurar o despertar das sementes, o desabrochar, o ressuscitar da Natureza. Mas ricordai situa-se mais próximo dos princípios que norteiam atualmente a reza. O canto transforma-se no engrandecimento da necessidade da oração, para a ressurreição das almas, depois de purificadas.
A Encomendação das Almas é entoada três vezes, em 3, 5 ou 7 lugares selecionados.
“Sempre em pernão”, precisam. São regras e interditos inexplicáveis que cumprem, e repetem anualmente porque “Foi assim que aprendemos!”.
São velhos rituais em que remanescem sinais, símbolos das cerimónias primaveris. Na verdade, um grande número de crenças pagãs subsiste depois da vitória do Cristianismo.
Em todo o processo da vida religiosa se observam práticas marcadas pela combinação de doutrinas diversas.
E durante os quarenta dias que antecedem a festa pascal, os fiéis abstêm-se de comer carne, penitenciam-se, oram, meditam, participam em cerimónias que apontam, preparam para a comemoração da ressurreição de Cristo. Quarenta, um número simbólico: é a duração da permanência de Noé na arca, o tempo que Moisés passa no monte Sinai; quarenta anos demora a travessia do deserto, o mesmo período duram os reinados de David, Salomão…
A “Encomendação das Almas”, manifestação de religiosidade popular, marcada pela heterodoxia, integra um corpus doutrinário transmitido de geração em geração, afeiçoado pelas comunidades que não descortinam explicação para o afastamento eclesial. Estas cerimónias foram, porém, envolvidas pela vivência da Páscoa cristã e, embora as Vulgatas não as registem, são rituais de fé, de coesão popular... Enquanto houver este interior…

09/04/2014
 

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