Maria de Lurdes Barata
NO FLUIR DOS DIAS OS SINAIS DO FLUIR DE ANTÓNIO SALVADO – APENAS UM APONTAMENTO
Apesar de a vida assumir sempre o sabor bom de ser vida, por vezes não flui em doce remanso e paz de usufruto. Efectivamente, nestes nossos dias em Portugal, temos sofrido os tropeções e dificuldades que todos sabemos com um saber de experiência feito. Mas não quero hoje falar disso. O melhor refúgio que sempre encontro é a palavra dos poetas. Bem disse Nietzsche que «temos a arte para não morrer da verdade». É esteio e consolo, para ultrapassar os obstáculos da caminhada. Por isso, hoje, vou referir-me ao poeta António Salvado, apetecendo-me falar dos Sinais do Fluir, mais um livro de poesia há pouco tempo chegado a público.
É no acto de cantar que se projecta a hipótese de ânimo em momentos de sofrimento e inquietação, erigindo-se um cântico sacral (poema homónimo, p.46), que é o de uma aleluia rompendo trevas, trazendo a esperança que os poetas nos sabem oferecer. Advém um verde renovador que persiste no coração: «De novo o verde vem fertilizar / o outono dormente da minh’alma - / sorrateiro e disperso, / tímido brota dos confins da terra / e eu sinto pelo sangue a propagar-se / um troador porvir de primavera.» Sagra-se a força da Natureza, sempre presente como um motivo na obra de António Salvado, sendo ainda a Natureza um exemplo motivador da esperança: «Embora inverno, sinto / as flores que já foram / como se vivas hoje / em luzimento abrindo.» O poeta faz da flor a imagem da beleza e do produto de um processo que começa em semente e tem contínuo evoluir nos brotos e no esplendor final em efémero de duração e vem do Inverno para o calor primaveril. Com a Natureza há o latejo cúmplice da palavra poética que vem do coração do poeta.
Vêm os frutos («E ainda no entanto os frutos brilham / para serem colhidos / pel’avidez de bocas sequiosas.»), as aves, os sons da palpitação vital, sinais da vida e da permanência por renovação, e há a permanência da pedra, em que se cristaliza o tempo de passagem física e humana - «E como aprofundar esse mistério / que as eterniza simples testemunhos / de rostos contorcidos, de secretas / vivências que existiram sem um rumo. // Sabe-se apenas que assistiram surdas / aos desencontros d’almas em conflito (…)» («Caos de Pedras…», p.20). Essa permanência no tempo implica antinomicamente a efemeridade humana, pois a sua imutabilidade testemunha, secretamente, a passagem das várias gerações, de que as pedras guardam um rumor humano, pois também simbolizam a Terra-Mãe.
O fluir traça um percurso do passado ao presente, um presente que sempre sonha o futuro na corrente poética de António Salvado. Como a própria palavra indica, fluir é passar de lugar para lugar, de pessoa para pessoa no encontro dos lugares, no encontro consigo próprio passando dum estado a outro, com sentimentos díspares como nas mudanças de estações, correndo os dias que vêm do passado que se esgotou, que se cumpriu, mas ainda está, uma vez que edificou uma identidade, ainda vive no memorar e fica presente nas pégadas («Irrompem fugitivas? Efusivas / pégadas que o passado não deliu (…)», p.25), nas marcas [«refulgem marcas entre o nevoeiro / do passado raiado: (…)»; «(…) agora: tudo foi e tão distante / como um ermo murmúrio / que teima ser ouvido sem razão.», p.43], nos ecos [ «E no entanto sem apelo teimam / em sangrar mas singrar com teimosia, / embora sejam ecos vagos vãos.», p.37].
O pé que percorre um caminho leva marcas, mas também o pé de cada um deixa marcas. As de António Salvado ficam, para todos, nos versos. Apenas um exemplo: «Esta voz me prolonga sem barreiras / que a definhem na sua solidez: / novos timbres soando em minhas veias / e diferentes ritmos de entremeio. / Esta voz continua a renascer.» (p.32). É «o fascínio dos próximos momentos» (p.11), sempre, no fluir do viver com a esperança.
NOTÍCIA RELEVANTE: A Câmara Municipal de Castelo Branco vai assumir a concretização de dois dias de COLÓQUIOS SOBRE A OBRA DE ANTÓNIO SALVADO no próximo Outubro. Mérito para a autarquia que se preocupa com um dos seus munícipes que é artista de nome internacional e mérito por honrar a cultura.