Antonieta Garcia
O Reich que a gerou...
Ou me engano muito, ou a chanceler Angela Merkel não está bem. Explico: Quando a ouvi, um destes dias, pareceu-me um espectro. De olho azul e loirinha, fanfarronou forte, como a língua alemã é capaz, uma ária com o espírito de “Ó tempo volta para trás”. Reatou uns fios perdidos, no sótão, desde a II Guerra Mundial, cerziu uns retalhos de ideias e com prosápia grandiloquente errou: Os povos ibéricos têm licenciados a mais.
Não fez contas, não estudou a lição, não percebeu que a afirmação, na sua nudez, evocava misérias e barbáries que, acreditávamos, estavam colocadas em estantes ad aeternum.
Era o que faltava, comparar Merkel à tristemente célebre salazarice que garantia que ao povo português chega saber ler, escrever e contar. Quaisquer três anitos de escola eram mais do que suficientes para os zés-ninguém nascidos num chão tantas vezes marcado pela austera, apagada e vil tristeza… (Camões). Até porque, por essa época, Virgínia de Castro e Almeida ousava aplaudir o analfabetismo no jornal O Século, garantindo: A parte mais linda, mais forte e mais saudável da alma portuguesa reside nesses 75% de analfabetos.
Mas isto acontecia na primeira metade do século XX, em Portugal. Havia povos e povos e o alemão era, então, o mais ilustrado da Europa. Pouco demorámos a perceber que as humanidades, as ciências, a escola não nos ofereciam proteção frente à impiedade maior. Nem a grande literatura, nem a música, nem a arte puderam impedir a barbárie total, comenta G. Steiner. Os nazis ouviam Mozart, depois de saírem dos campos de concentração, onde faziam experiências médicas em pessoas vivas, torturavam e mandavam criaturas para as câmaras de gás.
Por onde andavam os Direitos do Homem, a liberdade, igualdade e a fraternidade? É possível decretar a liberdade, podem produzir-se leis que promovam a igualdade, mas a fraternidade que reduz a desigualdade e regula a liberdade, não se impõe por lei.
Fomenta-se, conquista-se, constrói-se. Edgar Morin dixit.
Talvez o ensino se tenha preocupado mais com encher as cabeças do que em formar cidadãos e educar para os valores. Aprender significa passar de um estádio a outro, a fazer melhor, a compreender melhor, a ser melhor.
Ora, num mundo com uma cultura cada vez mais brutalmente monetária, com a censura dos media e dos mercados, com relações humanas sem espinha dorsal, nem massa cinzenta, corre-se o risco de um dia se acordar com a perceção de que se é um bicho, como na Metamorfose de Kafka.
Na verdade, quem acreditava que, depois da criação da União Europeia, se iria ouvir uma tirada que confirmava que os europeus são todos iguais, mas que há uns que são mais iguais do que outros? Se a sigla PIGS, em inglês, ficou encravada na garganta, bem como a obediência cega para nos tornarmos pobrezinhos, mas limpinhos, sem dívidas, esta saída de Merkel esgaravatou feridas até doer. Não podia a chanceler tirotear frases xenófobas, impropérios, ultrajes… deste cariz.
Angela Merkel quer preitesia? Convém-lhe que determinados povos tenham uma educação sumária, ou seja, só a suficiente para se ocuparem das funções que os seus conterrâneos depreciam? A moral é essa? Já fez as contas quanto ao número de licenciados, senhora chanceler? Olhe que nem o Zé Povinho, esse português albardado e tudo, suporta mais atropelos… Percebemos: A sua Europa será feita de alemães, para alemães… No século XXI.
Vergílio Ferreira temeu-o: Pensar a Europa. Pensar o esgotamento de todos os seus possíveis e a sua paralisia. Como um tísico e o seu olhar febril e cheio ainda de iluminação. (...) Ou pensá-la coalhada de eletrodomésticos e computadores, na ausência de uma sua alma enfrentada aos bárbaros da tecnologia. (…) Mas se temos pressa para entender, entendamos que nada vale a pena. E aí cabe tudo o que se refere ao livro, ao cinema, às artes e já agora à filosofia que é um saber de estirpe. E se a morte de valores te contende com os nervos, toma um calmante.
Não seria bom, senhora Merkel, que governasse só o Reich que a gerou?