Antonieta Garcia
O João e as histórias

Era uma vez, três e era e não era.
Durante as férias, decidi contar ao meu neto, de seis anos, a história: Era uma vez, três: um português, um grego e um francês; o francês ripou da espada e zás, catrapás, pás, pás. Mas não matou. Mas eu vou contar como a coisa se passou. Voltei ao começo, mudava a nacionalidade do que desembainhava a espada e repetia a cantilena, o João a ouvir com um ar desconfiado. Escutou três vezes. Depois, atalhou e reivindicou: Conta outra; essa é muito chata!
Tinha razão! A narrativa não produzira o efeito esperado. Ideia puxa ideia e dei comigo a pensar nos três chefes atuais da missão da troika: o indiano Subir Lall, chefe da missão do Fundo Monetário Internacional (FMI), John Berrigan, da Comissão Europeia, irlandês e também responsável pelo programa dito de ajustamento e Rasmus Ruffer, chefe de missão do Banco Central Europeu (BCE). Por serem repetitivos e chatos como os primeiros, parecem-me personagens da história em que cada um, vez à vez, puxa da espada e não matam, mas moem. Muito! E inquietam, perturbam, irritam. Muito! Sobretudo, quando se dão ao luxo de avaliar como demasiado altos os ordenados dos portugueses. Esta gente não sabe nada de nós e engendraram uma narração chata.
Repare-se: se tivessem em consideração que o vencimento mínimo nacional é de 485 euros, e que dois terços dos trabalhadores portugueses ganham menos de 900 euros mensais, - mais de dois milhões teriam, quero acreditar, pudor em falar da necessidade de baixar os salários. As pessoas têm casa, gastam água e luz, parece mal (no inverno está frio) andarem nus e descalços, e até comem.
Pois é: eles ripam da espada, não matam e desembainham a mesma lengalenga, avaliação após avaliação. Decretam austeridade e mais austeridade sorridentes. Quem e até quando se aguenta. Tanto quanto ouço, economistas reputados consideram que a dívida continuou a crescer e já ultrapassou os 200 mil milhões de euros. Os juros aumentam, os mercados que é deles, o crescimento ainda não deu sinal de si. O desemprego desceu, mas tão poucochinho que mal se sente, mal se vê. Mas os protagonistas de Era uma vez três insistem, insistem, insistem.
Em Portugal, troikistas de convicção somam-lhe outra narrativa perturbadora. Por acaso, contei-a, no mesmo dia ao meu neto e, de novo, me surpreendeu: Era e não era / Andava lavrando / Tinha um filho chamado Fernando / O pai era morto / o filho por nascer / Ao pobre do Homem / que havia de acontecer / Pôs os bois às costas e deitou o arado a comer.
O João, habituado a outros contos, indigna-se: Mas isso é tudo uma mentira! O pai era morto e o filho por nascer? É tudo mentira! Deitei a perder a minha reputação de avó contadora de narrativas bué giras como ele qualificava as que habitualmente escolhia. Mas percebi por que andamos, em Portugal, tão zangados com a vida, tão exasperados com os da espada que avaliam e não resolvem. Castigam. Afinal, os remédios que prescrevem são maus, não curam, antes têm agravado as moléstias. As histórias que nos contam tornaram-se uma construção sem sentido, uma mentira armada para justificar novos desaires a quem sempre ganhou pouco e mal. Comparem os vencimentos de outros países europeus com os dos portugueses. Acresce que as versões que nos servem ora dizem uma coisa, ora afirmam outra. Por exemplo, neste preciso momento, que oráculo devemos consultar para deslindar o significado das palavras de quem manda: vamos ou não precisar de um segundo resgate? O Presidente da República garante que não; o primeiro-ministro admite a possibilidade. Era e não era. Vale tudo e o seu contrário? Até quando?