Antonieta Garcia
Galos, garnisés, galarins…
Hoje de manhã os galos cantaram. Do garnisé ainda a afinar a voz, ao galaró de peito feito, do falsete ao tenor, passando por muitos barítonos, a sinfonia foi brilhante. Saudaram o sol, o nascer da luz, muito, muito cedinho, como é seu timbre. De início ouviram-se uns acordes, um aquecer do gorjeio. A alvorada a espreitar e os requebros cresceram e repetiram-se até a harmonia corresponder ao gosto / prazer do guião do canto do galo. Abriu-se o capoeiro. Não os vi, só os ouvi. Mas adivinho-os pomposos nas penas de cores garridas, senhores do galinheiro, a arrastar a asa aqui e além. Das paixões que despertam dizem as bicadas com que as pitas se brindam para desviar do herói concorrentes incómodas.
Uma temperatura amena, outonal, abriu as janelas a suas excelências, os galos, que se apuraram em cantorias para conquistas donjuanescas. Só os garnisés, novatos, enrodilhavam os sons em vozes aflautadas e inseguras. O Galo canta o advento da luz; não é por acaso que a celebração religiosa da noite de Consoada, do nascimento do Menino, ostenta o seu nome: Missa do galo. Não tem culpa o bicho que lhe inventem outros tortuosos significados. Porque há galos e galos. Olha o de Barcelos! Lembram-se? Um homem, condenado à forca pelo juiz, porque todos suspeitavam que fosse criminoso, salvou-o o galo. Prontinho a comer, assado e tudo, ouvira o infeliz dizer ao magistrado que era tão inocente quanto o galo que estava em cima da mesa. Vá lá saber-se por que oculta ciência o condenado adivinhou ser sagrado o animal… Certo é que , diz-se, apontou para a travessa e asseverou: Para provar a minha inocência há-de cantar quando me enforcarem. E, na hora em que o carrasco executava a pena, o frango assado levanta-se do prato e canta. O juiz corre célere… e salva o inocente. Bendito galo mais justiceiro que as justiças reinantes no país!
Crede: acordar com a celebração do sol, aflorar à memória o galo de Barcelos, para as ideias voarem e metamorfosearem-se os capoeiros… foi galo! Sobretudo, depois de comprovar que certos garnisés não passam no casting. Não há como valer-lhes! Novinhos em folha, por fora, avelhentados por dentro, vemo-los na TV, a rir e a sorrir, a tresandar a felicidade postiça… Dignos de dó maior andam depressa, tropeçam. Alguns ensaios e outros estágios ajudariam, para afastar dissonâncias, tormentas e trovoadas, mas no corridinho batido de uma lua-de-mel de pequenas e curtas glórias, o poderzito e a fama esfumam-se num ai. E se ninguém sabe o que os espera já amanhã, presumimos que na panela do desemprego não acabam. Outros pitéus bem condimentados e bem saborosos entrarão no menu. Chefes de cozinha inventivos proliferam nos programas televisivos e nos restaurantes gourmet. Quem os não conhece? A verdade, mesmo que a escondam, é que no capoeiro há sempre lugar para garnisés, tenores, barítonos e… muito poucos baixos.
E como eles se apessoam! A par de cozinheiros, o corte e a costura fazem milagres. A encadernação com corte e barba a preceito, cores canónicas, colarinhos modernaços e sei lá mais o quê, transformam em Richard Geere ou assim, qualquer criatura venha de onde vier.
O problema é que vários galos no poleiro é uma multidão e as picadas duras com sarabandas mediáticas ou se ignoram, ou moem, moem, causam olheiras e queda de penas que é um dó de alma. As brigas destes galarins, de resto, são célebres há séculos e há gente que se perde por elas. Contava Esopo, numa das fábulas, que, num galinheiro, dois galos disputavam o poder. Depois de luta renhida, um venceu; o derrotado afastou-se para um canto. Vaidoso, o vencedor subiu para o muro mais alto do capoeiro da quinta e, de arrogância ao léu, badalou a sua vitória. Uma águia enorme, de vista apurada, voava perto e viu-o. Desceu sobre ele, espetou as garras e levou-o, sabe-se lá para onde. Correu bem ao vencido que respirou de alívio. A partir de então, foi amo e fidalgo do galinheiro. Nem sempre o desenlace das histórias é em happy end, mesmo de tons moralistas. O mundo dos galos é bem mais complexo. Nos aviários partilham o espaço a milímetro, muito iguais, cacarejantes, ao arrepio do sol que mal veem. Mal vai ao capoeiro desgovernado, onde ninguém atina com a música e a letra do guião. Vira galinheiro. Afinem o coro antes de falar, sobretudo se há fantasias novas. O cantar do galo espera-se que seja celebração de luz… Quem sabe, um dia, quando os garnisés aprenderem que há formas de abençoar a vida que não passam pelo poder custe lá o que custar… Entretanto, e embora parecesse impossível, a gente conforma-se e aguenta…