Edição nº 1892 - 23 de abril de 2025

Joaquim Bispo
A PAIXÃO DE TONÍ

Continuação:

Quando se levantou do chão, Toní ergueu os braços a pedir calma. Olhava em volta, perdido.
- Deixem-me ir embora. Eu não fiz nada. Ela é que quis.
Uma grande vozearia respondeu-lhe. Era indiferente. Aquele moinante desviara uma filha da terra para o deboche.
Um fariseu tirou um fueiro de um carro de vacas, deixado no terreiro que atravessavam, e assentou-o, com força, no lombo daquele libertino, tentando exorcizar o medo secreto de que a sua mulher lhe fosse infiel.
Toní caiu pela segunda vez.
Levantou-se a custo, muito dorido, com o temor no olhar. Claramente, não podia esperar compaixão daquela gente.
- Deixem-me ir embora, que eu nunca mais cá volto.
Mais varapaus foram aparecendo. A populaça enfurecida acompanhava adequadamente Toní ao Largo do Calvário, onde o táxi o esperava, seguida por toda a canalhada da terra, que desfrutava a seu modo daquela festa inesperada. Saltando e berrando.
A corrupção dos costumes, personalizada naquele meliante, era a justificação interiorizada para a condenação por unanimidade. Ninguém queria ficar sem fazer justiça.
Mas talvez a dinâmica das multidões e os medos e ódios surdos para com o meio cosmopolita explicassem melhor tal ferocidade de comportamentos.
Mesmo à chegada ao Calvário - havia que aproveitar enquanto era tempo -, um cajado acertou de través “na cabeça do bicho”.
Toní desabou pela terceira vez.
De visão enevoada, sentiu a salvação no táxi ali parado.
Agora a turba queria saber se o tipo do carro também era da pandilha. O taxista, de braços no ar, implorava, como se fosse o mau ladrão:
- Não me batam. Eu não tenho nada a ver com isso; só vim fazer um serviço.
Mas não se livrou de uns tabefes. E logo notaram outra pessoa encolhida no banco de trás. Puxaram-a para fora. Tinha cara de mulher, dizia que era amiga da Rosinda, mas usava calças.
- Deve ser um paneleiro disfarçado de mulher - gritou um.
- Vamos despi-lo para vermos se é mesmo mulher ou um atravessado - lembrava-se outro, ideia muito acarinhada pela maioria da homenzarrada.
Logo a rapariga foi despida e toda a gente verificou as suas credenciais de mulher. Uma das tais, com certeza. O alarido da canalha baixou um pouco, que não dava para berrar e, ao mesmo tempo, mirar como era o corpo nu de uma devassa de Lisboa.
Nessa noite, as mulheres casadas, e não só as dos que nunca tinham saído da terra, iriam ter de aceder a uma súbita e urgente inspiração dos maridos.
Tudo estava consumado. Para que se cumprisse o que está escrito no ditado que diz: “Cá se fazem, cá se pagam”. A malandragem de Lisboa tinha aprendido a lição. Podiam seguir.
Entrou a rapariga, a cobrir-se como podia, com as roupas rasgadas; entrou também para o banco de trás Toní, sujo, rasgado e a deitar sangue da cabeça. Finalmente o motorista, a dar graças por conseguir escapar sem grandes danos, na pele e no carro.
Na estrada escura e interminável para Lisboa de finais da década de 50, Toní gemia, sangrava e desfalecia. Madalena consolava-o, sem sucesso.
O taxista acelerava, apesar das inúmeras curvas da estrada. As horas passavam, mas nunca mais chegavam a Lisboa.
Um pesadelo aflitivo, uma angústia mortal. Toní não aguentou. Morreu antes de Mora, tombado no colo de Madalena.
Os jornais regionais relataram a ocorrência de modo sucinto, a Guarda foi depois à aldeia, a perguntar os “quês”, os “comos”, e sobretudo os “quens”. Mas toda a gente só soube dizer que foi o povo. E era verdade.
Um povo mais do que outro, mas era verdade: foi o povo.

23/04/2025
 

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