Guilherme D'Oliveira Martins
PARA CAMILO CASTELO BRANCO…
Para José Viale Moutinho.
Camilo Castelo Branco é um caso singular na literatura portuguesa. Foi o nosso primeiro profissional da escrita e assim se fez respeitar como um autor aclamado pelo público leitor. A sua produção literária, que continua a ser apreciada, chega aos nossos dias preservando a sua força essencial. Há uma considerável distância no tempo, mas no essencial é a compreensão do género humano que está em causa. É, assim, ilusório o debate clubístico entre os camilianistas e queirosianos. Estamos perante artistas da mesma arte, ambos com um nível excecional, mas dispondo de um perfil radicalmente diferente. Antes do mais, o percurso de vida do autor de Amor de Perdição é marcado por vicissitudes que o aproximam dos acontecimentos ocorridos em Portugal no dealbar do liberalismo constitucional, nas suas diferentes vertentes, resistência e incentivos, o que nos permite compreender quer as raízes profundas da sua inserção no país tradicional, quer o confronto com a lógica dos ambientes citadinos.
Camilo encarna, a um tempo, o país fiel às suas tradições e a sociedade que anseia modernizar-se. Veja-se como nos conflitos civis que abalaram profundamente os portugueses e no imaginário subjacente a tais contradições, Camilo faz opções genuínas, até divergentes, indo ao encontro de sentimentos profundos que procuram seguir não só uma continuidade histórica, mas também a consciência popular. Lembremo-nos das apreciações sobre o movimento da Maria da Fonte, verdadeiro levantamento de um conjunto de amazonas de tamancos, tornado vivo nas memórias do Padre Casimiro, no ano de 1846, onde uma certa saudade articula as componentes paradoxais desse estranho episódio, que constitui matéria-prima para um fecundo manancial romanesco. Dir-se-ia que a reminiscência miguelista, já enterrada há mais de uma década, renascia num outro tempo e num outro contexto, apesar da demarcação evidente, para reconstruir a sociedade nova de constitucionalismo liberal. E assim, concordamos com Hélia Correia quando nos diz que Maria da Fonte sobressai, aliás, no conjunto da sua obra pelo modo seguro, diríamos, convicto, diríamos sincero, com que o autor reúne os seus conhecimentos, as inflexões de estilo, as gradações de orador apaixonado que ora ironiza, ora vitupera, ora se indigna, para com este texto servir a causa do progresso, do liberalismo, do espírito científico” (Prefácio a Maria da Fonte, Ulmeiro, 1986, p. 14). E aí deparamo-nos com o formal desmentido da lenda que circulara, e que alimentara, de que Camilo fora lugar-tenente de Mac-Donell. Já quando lemos A Brasileira de Prazins deparamo-nos com os ingredientes fundamentais do panorama social, a consideração das contradições políticas e sociais, com a chegada de um falso D. Miguel e a exigência de reparar naquela sociedade um compromisso social que obrigaria a encontrar novos caminhos. E Camilo Castelo Branco é autor e consequência de tudo isso, e sente no íntimo de si os movimentos subterrâneos da comunidade, centrífugos e centrípetos, que constituem fundamento de um panorama narrativo inesgotável.
Com ironia e profundo conhecimento histórico, Camilo Castelo Branco fala-nos de um tempo longo, apreensível nos pequenos pormenores. Veja-se na apreciação da obra histórica de Oliveira Martins, o caso do Mestre de Aviz, que não poderia ser marido legítimo de D. Filipa de Lencastre sem dispensa de votos de clérigo, de que apenas foi libertado quatro anos depois do casamento… Há misteriosas condicionantes que influenciam inesperadamente os acontecimentos. E o romancista conclui na análise da obra que “nesta História de Portugal há a largura dos grandes aspetos sociais dados a factos que pareciam pequenos e escurecidos em meio de outros mais característicos”. E o historiador generaliza luminosamente “com uma grande harmonia de plano organizador, agrupando factos desconexos talvez com a cronologia, mas moral e politicamente harmónicos. Em poucos traços essenciais resume-se um período de história, uma anedota, um caso despercebido e sem o selo de notável importância sociológica, tratado (…) consoante o modo familiar de Taine, abre-nos a porta da vida íntima de uma época”, juntando ironia e realismo. E se um crítico disse que a História se lia aprazivelmente como um romance, o certo é que tal não pode ser levado à conta de um demérito. Contudo, esta História lê-se devagar e atentamente, devendo ser melhor entendida e apreciada por aqueles que houvessem colhido uma imperfeita, senão falsa, compreensão da vida portuguesa no estudo das crónicas. E Camilo não se impressiona com as quebras eruditas, já que na obra no seu todo prevalece a argúcia crítica e a visão do conjunto e do fundamental. Se há lapsos seriam de influência nula e outras consultas, “com um grande e malogrado escrúpulo”, não dariam ao autor novos elementos relevantes. E assim descobrimos no genial romancista o leitor atento do poderoso cultor da História com compreensão do essencial das personagens e dos acontecimentos.
Probo romancista, bibliógrafo irrepreensível, cultor da língua como poucos, leitor exemplar, comentador dos acontecimentos com sentido prospetivo, conhecedor da História do País e dos seus povos, Camilo Castelo Branco é um caso especial nas literaturas da língua portuguesa, digno de ser exemplo por tudo quanto nos deixou numa escrita viva e atraente, servida por uma panóplia ampla de personagens que caracterizam em termos dinâmicos a sociedade portuguesa, num panorama que abrange o Portugal antigo e o Portugal moderno em cada uma das suas especificidades.