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Edição nº 1865 - 16 de outubro de 2024

Maria de Lurdes Gouveia Barata
A SEPARAÇÃO E O ADEUS

É no lugar do coração que se aglutinam as vivências que nos levam a eleger um tema ou a assinalar cogitações. Esta crónica assim nasceu, fixando-se numa sensação da vida, numa meditação. Inspiro hoje a minha escrita numa vivência pessoal, que teve o dolorido travor da separação de alguém que se amou a vida inteira, com quem partilhei anos do meu viver desde a infância e depois por aí fora no tempo, mesmo vivendo em lugares diferentes, porque os liames do afecto se tornaram indestrutíveis, com amarra até ao fim dos dias. Escrevo e medito porque o meu irmão, o Rui, partiu para sempre há dias e a separação leva-nos à despedida e ao adeus.
A separação traz em si sentimentos de tristeza e é só lembrar a «Cantiga Partindo-se» que afasta os amantes e que um poeta como João Roiz de Castelo Branco imortalizou com a intensidade do sentimento profundo que emerge da alma humana ««Senhora, partem tão tristes / meus olhos por vós, meu bem, / que nunca tão tristes vistes / outros nenhuns por ninguém» (…). A separação traz à tona uma nostalgia antecipada por um questionamento do futuro sem alguém que nos é querido, que já não está, não respira no mesmo lugar que habitamos e se chama mundo. Também antecipadamente vai crescendo uma saudade da partilha e do companheirismo, que, em vida, estavam certos, fosse perto ou fosse longe o lugar de cada um viver. Falo duma separação sem regresso, um regresso visível, palpável, com voz, que os sentidos permitem. O momento da assombrosa revelação convoca, para mim, o «Soneto da Separação» de Vinicius de Moraes:
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.

Não há dúvida que a separação, mesmo que esperada, se torna um «de repente». Ficam os braços caídos, os olhos fixos em nada, o corpo esquecido pelo frio da alma tremente, num pranto interior de bruma, no sentimento da despedida que é um adeus. Definitivo. Por isso a própria palavra vem da contracção latina a Deo, a Deus: a uma divindade desejamos protecção do ente de que nos separamos.
Qualquer morte de uma pessoa empobrece a humanidade que engloba o conjunto de todos os seres humanos. Lembro um curto poema de António Salvado, da obra Cicatriz, referência da guerra colonial, que frequentemente li em público pelo que aprecio da emoção que desencadeia:
ACONTECIMENTO
Por entre as lágrimas desceu
uma palavra amarga e aflita…

(Parece que um Homem morreu).

Todavia, a partida dum ente próximo e querido comove mais aqueles para quem eram queridos e próximos, criando vazios perturbadores com o ferrete de um nunca mais de visibilidade. Pode ser um nunca mais provisório, se considerarmos o questionamento dum depois da vida física. Mas um lugar vazio fica. Lembrei eu, na despedida ao meu irmão, palavras de Victor Hugo: «Os mortos são uns invisíveis e não uns ausentes». Nos corações dos que os amam permanecem e tornam-se voz e olhar e sorriso e saudade descendo como neblina benfazeja, incrustando-se em memória para sempre. O momento da partida torna-se um lugar irremediável, que nunca se transforma em esquecimento. Esse lugar continua a deixar-nos ver os dias azuis ou com neblina e as noites de estrelas com cintilações de lágrimas de saudade. E a saudade é a memória do coração, disse Coelho Neto. E «o efeito da memória é levar-nos aos ausentes, para que estejamos com eles, e trazê-los a eles a nós, para que estejam connosco» (Padre António Vieira, Sermões)
Atrevi-me a falar dum caso pessoal, mas que foi inspirador para dissertar sobre sentimentos, que decerto ecoam naqueles que já viveram uma situação semelhante com que nós, mortais, todos nos identificamos.
Termino chamando a poesia («Foi um momento», Fernando Pessoa, Cancioneiro):
(…)
Não sei. Mas lembro
E sinto ainda
Qualquer memória
Fixa e corpórea
Onde pousaste
A mão (…)
(…)

16/10/2024
 

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