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Edição nº 1829 - 31 de janeiro de 2024

José Dias Pires
A RETOMA DO DIA TÃO ESPERADO

O orador compôs o chapéu de candidato, chegou-se ao varandim e disse:
«Hoje é o dia em que acontece a festa. O dia tão esperado por nós que tão ansiosamente o aguardamos. Hoje é o dia da celebração do sofrimento e da passividade: a nossa alegria que nos mantém vivos, unidos, diferentes, únicos. Bater-nos-ão palmas os que estão impossibilitados de entrar na nossa festa, os que não descobrirão, depois deste discurso, que serão eles quem começa a morrer por dentro, incapazes de contestar, quanto mais matar, os que ficamos, como sempre, do lado de fora da amargura. As criaturas azuis, que nada possuem, são os donos da rua? Deixá-los viver esse engano, pois não se darão conta que somos nós os seus donos. Deixá-los devorar as nossas insígnias com os olhos e reter os novelos de fumo dos fogos-de-artifício entre os dedos indicadores e polegares, desfrutando desse poder efémero, provisório e fugaz. Deixá-los saciar, nesse pequeno momento triunfal, a fome das suas almas que não têm espírito, apenas calamidade. Mas nunca conseguirão entrar aqui em grupo. Inaptos e desconhecedores, levariam mais do que um ano para compreender as nossas fechaduras e mais do que um mês para abrir as nossas portas. Engendrariam dezenas de estratagemas, centenas de projetos, milhares de tentativas, antes de o conseguirem concretizar. Mas, atenção, existe uma força maior. Maior do que eles, maior do que nós: a força do tempo que nos ajuda a atingir os nossos propósitos, a não recuar perante as dúvidas, se as temos, quanto à natureza das nossas festividades e ao tipo de mortes que elas provocam.
Ontem, antes de começar a preparar este discurso, inspirei lenta, profunda e demoradamente. Cheguei-me aqui, ao varandim, e olhei o céu. Estava lindo, cinzento, a prometer a tempestade regeneradora de todos os nossos males. Depois, as nuvens começaram a pingar. Oferecidas por aquele véu de cinza, as gotas acariciavam-me a pele, limpavam-me os olhos e eu pude ver, no horizonte que daqui alcanço, este Arquipélago do Tempo, que nos protege, e os seus mostradores: o do passado, no Bairro das Memórias; o do presente, no Olho do Tempo e o do futuro, no relógio Vinte e Quatro.
Hoje, uma vez mais agradecidos, tomamos as rédeas da gloriosa ditadura do tempo. Uns, para as segurar com as suas asas; outros, a tê-las como extensões dos seus braços e pernas
Aproxima-se a prometida tempestade. Não tarda, chegarão os ventos que hão de trazer-nos a paz dos dias intranquilos. A paz que acompanha o fim da solidão que tem sempre um fantasma a arrefecer-nos a alma. E as almas frias deixam os corações desasados, a vontade desarmada, desalmada, à mercê dos franco-atiradores.
Sim, se as almas frias deixam os vossos corações desasados e a vontade desarmada, desalmada, à mercê dos franco-atiradores, o coração tem olhos que veem muito para além do olhar e descobrem as nuvens que são palavras pequenas rodeadas de monossílabos plurais: céu, nós, vós, pós.
O coração tem olhos que veem muito para além do olhar e descobre que há um momento em que a fome, a descarada fome da abundância dos outros, entra na cidade sem lhes bater à porta. E então, na sombra dos silêncios, as palavras, que toda a vida sobraram, brotam lambuzadas de bem hajas, de insistências, a fingir-se novas de tão velhas: farturas.
Onde estão agora os nossos sábios? Onde estão os nossos génios, os nossos mestres, os filósofos do nosso tempo, que nada fazem, que nada veem, que nada compreendem para além do palmo que lhes fica à frente dos seus narizes?
Sim, estamos à beira do fim! Está a chegar a tempestade. Sabeis que tempestade é esta? É a tempestade do regresso à eternidade infantil. É a morte regeneradora da qual nascerá a grande transformação — a liberdade!
E nós, o que somos perante tudo isso? Um conjunto de marionetas, que vive, sem saber, uma vida controlada por mentiras sempre aceites como imutáveis verdades? O que está a acontecer à nossa cidade? Para onde caminhamos? O que há por detrás de tudo o que se oculta, que se afirma não existir, que é garantido ser apenas fruto da imaginação de mentes doentes? O que há no outro lado do Mar de Cá onde não chega a nossa vida?
Temos as nossas almas frias, mas há calor nos nossos corações.
Aos poucos vai-se cumprindo a vontade dos malditos deuses ilusores, das malditas ilusões deificadas.
Apesar de tudo, a pesar tudo, hão de chegar: os livros, as palavras, as pessoas, como um golpe, profundo, em todas as ausências!
Porque no final, seja lá quando, como e contra quem for, nesse final não estaremos sós!
É que esse final somos nós!
Apesar dos olvidos que disfarçamos, olhando para o lado, como se ao esquecimento a desculpa lhe oferecessem; apesar de tudo isto, parece que apenas somos capazes de apontar, como se à nossa sombra incomodasse a alegria matinal.
Olhemos as mãos: que mundo é este no nosso presente sem passado?
Sim, olhemos as mãos: que vida os seus dedos lhe merecem?
Sim, sim, olhemos as mãos: temos tanto caminho ainda por andar! Será que temos medo de deixar na vida uma impressão digital?»
Na grande alameda, fronteira ao varandim, gritava-se «É hora! É hora!»
Ribombaram três trovões. Um ensurdecedor troar apocalíptico caiu sobre a Cidade e três relâmpagos, geometricamente traçados, caíram nos arrabaldes. Depois dos estrondos, o silêncio envolveu aquele mundo até que se ouviu o que parecia ser um foguete.
O orador compôs o chapéu de candidato e caiu desamparado no varandim.

31/01/2024
 

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