Lopes Marcelo
SOBRESSALTO E DESAFIO
Iniciou-se o corrente mês com a surpreendente movimentação das JORNADAS MUNDIAIS DA JUVENTUDE, acontecimento notável a vários títulos e a merecer reflexão sob diferentes perspetivas.
Pela sua dimensão e pela presença do Papa Francisco com as suas múltiplas e significativas intervenções, a dimensão religiosa no âmbito da Igreja católica foi dominante embora dando relevo a muitos valores de caracter humanista e ecuménicos, de dimensão universal, que estiveram presentes.
Desde logo a figura, o exemplo e o testemunho do Papa Francisco. A sua vida de grande disponibilidade e proximidade junto dos mais necessitados, habitantes pobres das periferias, numa postura de serviço e de diálogo que evidencia a sua genuína humildade e generosa bondade. Outra dimensão que o seu Magistério tem procurado enfrentar é a da evolução da Igreja católica adaptando-a aos nossos tempos, entendendo a religião como algo ecuménico, espaço de igualdade, de diálogo e abertura às pessoas conforme elas são. É extraordinário o carisma com que afirmou e muito sublinhou que a Igreja é para todos, que não deve ter portas nem alfândegas selectivas e controladoras. Estes valores e práticas que se afiguram tão necessários e quase revolucionários, representam uma preocupação de reafirmação das ideias e dos valores fundacionais do cristianismo dos primeiros tempos.
De facto, as primeiras comunidades de cristãos interpretavam e praticavam o sentido de religião como a força redentora que os reunia, que os religava e fortalecia numa entreajuda despojada que se baseava na igualdade, no respeito pela pessoa humana com direitos próprios e não como propriedade dos senhores do poder civil ou da guerra, fossem reis ou imperadores. Foi tal a força agregadora dos ideais e dos testemunhos derivados dos ensinamentos do cristianismo no coração do império romano que, no início do século IV o Imperador Constantino se converteu e, no final do mesmo século, o cristianismo foi instituído como religião oficial do império romano. Contudo, na medida em que se tornou uma grande organização confundiu e misturou o poder espiritual com o poder material, a propriedade, o usufruto luxuoso de bens materiais e os privilégios progressivamente acumulados pelos dignatários religiosos. A Igreja foi ficando cada vez mais rígida de dogmas, fria e fechada numa casta de “servidores”, auto considerados elite com qualidades e capazes de sacrifícios especiais para merecerem intermediar a relação dos fiéis com Deus. Este processo histórico foi-se desenvolvendo em hierarquias pesadas e autoritárias até que no início do século XVI o Movimento da Reforma Protestante pôs tudo em causa atacando sobretudo a autoridade e a infalibilidade do Papa, bem como os privilégios e bens materiais da corte Papal e das cortes dos Bispados, enquanto ao povo restava redimir-se vivendo pobremente em “vale de lágrimas”. Em meados do mesmo século XVI, O Concílio de Trento respondeu com a Contra Reforma reafirmando os fundamentos dogmáticos e, para os exercer e controlar, criou o Tribunal da Santa Inquisição de tão má memória, sobretudo em países em que os reis se submetiam ao poder supremo da Igreja, como aconteceu em Portugal. Foi através de uma autoridade, por vezes repressiva, que a Igreja se consolidou e expandiu com os novos territórios descobertos e cristianizados. Só com o Concílio Vaticano II é que os ventos da modernidade entraram na Igreja e os últimos Papas, cada um à sua maneira, contribuíram para a abertura e modernização, sempre difícil em face do pesado fardo e herança histórica. Esta é a evolução necessária no sentido da democratização da participação dos fiéis sem distinção de género ou de classe, da justiça social e intervenção na sociedade abrindo-se e submetendo-se ao primado da lei, dos direitos e deveres nas sociedades democráticas. Trata-se de uma revolução nas mentalidades em que o Papa Francisco se tem empenhado. Oxalá que tenha vida e forças para continuar a deixar a sua influência marcante.