Maria de Lurdes Gouveia Barata
O SABOR DOS DIAS
Os dias têm sabor. Falar de viver ao sabor dos dias é enfrentar o que vier ou aceitar o que vier. O sabor, porém, pode ser amargo ou doce, pode ter mais participação ou mesmo indiferença conforme cada pessoa. Os dias de Verão evocam logo uma parte de vivência de férias, de alguma mudança, mudança que faz bem por não ter cumprimento de horários de trabalho, por ser diferente nas responsabilidades. Assim, podemos deixar-nos ir ao sabor da corrente que esses dias especiais formam. Alguma despreocupação concede um acaso de desvio de rotinas cansativas. Todavia, os dias têm sempre um sabor que experimentamos na recepção de notícias e de eventos que podem alegrar ou perturbar.
Os dias saboreados em Julho e neste mês de Agosto têm uma cercadura meteorológica de calor (e que calor! já vem desde Abril) e de ventos. Numa noite de Julho (igual a outras), fui como habitualmente à varanda e não estava o vento costumado, estava uma ventania que me arrepiou de frio e até falei sozinha se houvesse nuvens e o céu estivesse ameaçador já tinha medo de que viesse um fenómeno extremo, desses que agora surgem de repente por todo o planeta. Lembro logo outra expressão afim: ao sabor do vento. É mais ambígua que ao sabor dos dias, porque há gente que anda ao sabor do vento conforme interesses, mudando opiniões e posições com oportunismo. O vento sempre me amedrontou, talvez por restos de lembrança do tufão de Castelo Branco em 1954. Foi sempre memória avivada ao longo destes anos, passando de pessoa para pessoa. Uma das minhas lembranças de infância é o som do vento assobiando nas janelas, em férias de aldeia. Sempre lhe descobri uma voz e um chamamento, como se me entrasse alma dentro como um choro e revelação de uma espécie de segredo misterioso, porém nunca revelado. Era um vento que uivava no Inverno ou sibilava numa tarde quente de Verão. Raramente oiço aquele silvo agora, mas lembro que das vezes em que o ouvi voltou a entrar-me bem dentro, com a emoção evocadora de casa da aldeia em tempos de meninice. Por isso, quando li pela primeira vez (teria doze, treze anos) «A Tempestade» de Alexandre Herculano, logo elegi o poema como um dos meus preferidos. E li e reli. Não só pelo «sibila o vento» do início ou pelo medo atraente dos «torreões de nuvens», mas também pela transposição a um viver social que é veiculado. Já me tinha apaixonado «A Dança do Vento» de Afonso Lopes Vieira, dando uma satisfação especial dizê-lo em voz alta. Reinaldo Ferreira, no poema «O essencial é ter o vento» faz um apelo a que se compre, porque dá a liberdade que existe na Natureza, sem competições de negócios de ganância.
O vento serve para estabelecer comparação com a efemeridade de tudo - «Palavras leva-as o vento»: «Tudo passa como um vento» - e igualmente comparação com tempos agitados - «Lugar ventoso, lugar sem repouso»; «O vento é obra do diabo». Quanto a ditados não mais se terminaria.
Reparo agora que escrevi ao sabor da caneta, à deriva do momento. Foi um sabor deste meu dia. Mas volto a outros sabores dos dias de Agosto e não posso deixar de referir a Jornada Mundial da Juventude, não posso sobretudo deixar de referir Jorge Mario Bergoglio, que se elevou a um exemplo tão humano de Papa: o Papa Francisco. Foi uma brisa de compreensão, tolerância, amor, não deixando de ser um vento forte que bateu salutarmente no rosto de todos os que o ouviram e o viram rodeado de milhares de jovens, que ele disse que não são o futuro, mas o presente. É por esse presente que podem dar a garantia de um futuro. Repetiu e repetiu o «não tenham medo» com a força apelativa que leva a não desistir, que dá a persistência da luta pela vida, uma vida de amor fraterno – não sejam administradores do medo, mas empreendedores de sonhos. Há algo mais belo do que empreender sonhos? Empreender sonhos leva a agir, o homem tem de responder às inquietações (Francisco citou Pessoa: «estarmos insatisfeitos é ser homem») com o sonho e a luta.
Agora sorrio, porque, involuntariamente, associei a vento uma das últimas recomendações de Francisco: «sejam surfistas do amor» - evoca a onda de jovens na JMJ, mas também as ondas altas e tumultuosas dum mundo que vivemos, para o qual pede orações pela paz. O Papa Francisco deu um sabor peculiar aos dias que esteve em Portugal (para crentes e não crentes) – exímio comunicador com afecto e com alegria. A alegria é ainda uma prova de amor à vida. Por isso, termino com uma das frases que o Papa Francisco repetiu: «a alegria é missionária». Que sabor dá aos dias!