José Dias Pires
UMA LÍNGUA ESTRANHA
«Conta pai, conta. Conseguiste o que eu te pedi? Fotografaste-o?»
«Consegui mais do que isso. Consegui um desenho. Guarda-o.»
«Caracóis?»
«Caracóis e mar.»
«E porquê pai? O que é que ele disse?»
«Quem?»
«O senhor do passeio do rio.»
«Disse que os caracóis guardavam as palavras difíceis, começadas por A.»
«Difíceis?»
«Sim, amanhecer, acariciar, amar.»
E explicou-lhe, o melhor que pôde, porque é que estas palavras eram difíceis.
«Não percebo pai. Eu acho que são fáceis. Gosto delas.»
O pai lembrou-se de exemplificar com fotografias.
«Olha, sou eu a acordar!»
«E com cara de poucos amigos!»
«E aqui estou a fazer festas ao gato.»
«E foste arranhado, porque lhe puxaste o rabo.»
«Nesta, estou a dar um beijo à mana.»
«E acordaste-a.»
«Por isso é que estas palavras são difíceis, pai?»
«Sim. As coisas mais bonitas são sempre as mais difíceis de conseguir, se não as tratarmos com o cuidado que merecem.»
«E o mar, pai?»
«Qual mar?»
«O mar do desenho, as ondas.»
«É para afogar as palavras fáceis.»
«Já sei, que afinal são difíceis.»
«Eu explico.»
E, de novo, servindo-se das suas fotografias, exemplificou o que de pior há quando se obriga alguém ao que não quer; quando se obedece por medo ou interesse e não por dever; se dão prendas para receber algo em troca; se teima sem razão; se criam problemas desnecessários às pessoas ou quando se está contra sem justificar o porquê.
Falava para o filho e descobria, também ele, o que o leitor pretendia quando falou.
O jovem ouvinte olhou para o pai cujo olhar se perdia algures para lá das paredes da casa.
«As palavras dele parecem uma língua estranha, pai.»
«De quem?»
«Do senhor dos desenhos. São mais difíceis que o inglês, porque são portuguesas e eu não as entendo. Mas gosto da música.»
«Da música?»
«Sim, da maneira como ele as diz. Gosto daquela música.»
«Do tom.»
«Ou isso. Sabes, umas vezes é triste outras vezes é alegre, e algumas vezes é zangada. Sei lá, pai, parece teatro. Mas ele não é maluco, pois não?»
«Claro que não.»
Tinha lido, recentemente, um poema que o fizera refletir sobre a loucura criativa: a insânia da ousadia, da diferença e da originalidade.
Por isso a admiração por aquela personagem que tinha sido seu professor de filosofia e parecia não se lembrar disso (aliás, um tímido comunicador do que podia ter sido uma geografia da novidade e se ficara apenas por um mapa das estradas que conduzem ao compêndio).
No passeio do rio, naquele Lugar de Ler, como costumava designar o seu banco de eleição, ele era tudo menos previsível. Quem o olhasse com atenção não conseguiria nunca imaginar que aquela figura cinzenta fosse capaz de falar, muito menos de falar alto e ainda menos de dizer o que dizia de forma altiva, profunda e desafiadora. Os seus textos improvisados lembravam-lhe as palavras da raposa de Antoine de Saint-Exupéry: “É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos.”
Cada um devia poder ser o fruto da sua vontade e não o resultado de um molde social conveniente.
O professor descobrira-se leitor. Um leitor poeta que não precisava de beber para se sentir embriagado, nem de dormir para sonhar. Sentado, viajava com o olhar para reconhecer e assinalar o seu mundo; sorria para a tristeza cinzenta dos dias repetidos, dos caminhos iguais, das sombras duplicadas.
O pai fotógrafo ainda andava a descobrir-se.