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Edição nº 1788 - 12 de abril de 2023

António dos Santos Pereira
CANTEIROS DO JARDIM DA PAZ SOBRE 7 POEMAS DE ANTÓNIO SALVADO

O livro do Génesis abre a Bíblia Sagrada com uma leitura explicativa dos mitos das origens, enquadra nela a mais lídima faculdade humana, a vontade, capaz de arrostar Deus e o outro, fazer a paz e a guerra e deixa aos senhores desta o destino em dupla e inversa narração, diz adiante o poeta António Salvado. A propósito, no último dos seus apontamentos em perfeito número sete, o nosso vate remete ao lugar bíblico da morte de Abel, por Caim: o início da conflitualidade em que as civilizações pastoris e sedentárias se digladiavam. Começamos por ele. De facto, se a vontade transtornada pelo entendimento pode levar à guerra, no inverso, movida pela boa razão, na forma como quer Kant, encontrará os caminhos da paz perpétua. Não é a guerra que faz a civilização, como alguém desenvolveu, mas a paz. A civilização acumulou recursos e saber em tempos desta e a História confronta-nos com o pouco que resta da memória de destruição dos tempos daquela. Com efeito, a realidade da guerra, por destruidora no absoluto, ficou mais escondida do que documentada nos vazios trágicos do passado.
Assentamos que, em Portugal, o poeta António Salvado é a nossa mais autorizado voz sobre os temas da guerra, da paz e das manifestações desta: a abundância, a fraternidade e o amor. Ele viveu os anos daquela em um regime incapaz de lhe pôr fim, passou por ela e esta deixou-lhe tantas marcas que ainda hoje ouve os reais sons da metralha que tudo aniquila como lamenta no soneto “Espera” (1969), por “não haver um Homem capaz de gritar Paz! Paz/”. Antes desta clássica peça, mostrara-nos em Cicatriz (1965), no mesmo modo livre, em que agora compõe os poemas adiante, o que sobre ela diz o Pe. António Vieira que também viveu a mais longa guerra, a da Restauração, que houve em solo português contra Castela, pela independência: “é a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta”. Bem antes de Kant, é o mesmo Vieira que sublinha a boa vontade do Homem no sermão do aniversário da Rainha em 1668, meses depois do Tratado de Madrid, de paz perpétua de Portugal com Espanha, e tiramos daquele a asserção anterior e a imediata: “o sol pode fazer dias longos; dias grandes só os podem fazer as ações” humanas. A “felicidade da paz” é onde e quando Deus e o Homem coincidem no agir, intuímos nós do que mais demoradamente prega.
De forma única, pelas razões percebidas, o nosso poeta aponta-nos o empenho de todas as potencialidades humanas, as sensitivas e intelectuais, as volitivas e pedagógicas, na rejeição das guerras. Se em vez dos sons da metralha, dos acordos falhados e dos acordes dissonantes, voltássemos ao princípio, aos tempos míticos do jardim dos poetas, aos timbres sãos e acordes suaves, a humanidade redimir-se-ia em causas justas. A fraternidade daria o bom tom e a árvore da vida voltaria a crescer. Não há nações sem poetas e os poetas de grande lastro, como o António Salvado, haviam de proclamar em todas elas os tempos de paz com tudo o que esta significa de fraternidade, de trabalho e abundância, nas metáforas que ele muito preza da seara e do jardim. Os seus sete “apontamentos” adiante são as estações da rota que os povos em conflito devem fazer para a retoma da felicidade, de forma recorrente, por isso também canteiros de jardim: a honestidade nos tratados; o azul do céu, sem garras de morte nele; o convívio ameno; a música paradisíaca; o diálogo e a convivialidade; o respeito pela vida e a fraternidade.
Sete apontamentos ao correr da pena (Sinónimo de caneta e de “mágoa”) em memória da paz, Tradução para o ucraniano de Anna Kramar, Sirgo, 2023.

12/04/2023
 

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