José Dias Pires
O FIO DA MEADA
Logo pela manhã, dava-lhe prazer andar a pé. Sentir a brisa recém-nascida afagar-lhe a cara até chegar o momento de parar para ler.
Sem esperar que o ouvissem, percorrido o caminho semanal até onde, sentados, os olhos começavam a adivinhar, pegou no pequeno caderno negro de capa dura e, como sempre, tirou de lá uma folha cuidadosamente vincada.
Desdobrou-a da esquerda para a direita e de cima para baixo com o carinho próprio de quem escreve em silêncio a sua vida. Tirou a tampa da caneta e escreveu, sem palavras. Repôs a caneta no seu lugar e resguardou a folha no caderno semiaberto. Assegurado que nenhuma das palavras memorizadas tinha caído ou perdido alguma letra, fechou os olhos e leu baixinho, num quase silêncio bichanado que apenas a sua língua ouvia.
Construídas em surdina, e misturadas suavemente com a saliva, as palavras sabiam-lhe a limão, canela e gengibre, antes de se esconderem nos espaços brancos da folha de papel.
Andou meses a prepará-las.
Aquele agridoce, com um ligeiro picante oriental, deixava-o pronto para o que estava para vir: o primeiro relatório poético, dito em voz alta para quem o quisesse ou não escutar, começando pelas palavras que foram um desafio lançado pelo seu avô.
Podiam pensá-lo louco, que isso pouco o incomodava.
«Eu não tenho medo, nem vergonha de falar alto!
Este é o fio da meada: olhem, olhem além até onde o olhar se aconchega e me indica o caminho do regresso.
Depois, imagem a imagem, palavra a palavra, gesto a gesto, as ideias fazem o resto: enrolam a meada, percorrem-nos por dentro e trazem luz, sons e aromas até ao centro de nós: o coração de quem tiver um formigueiro dentro de si.
Quem quiser, como eu, saber onde nos leva o fio, tem de olhar o tudo e perceber o nada. Afinal é esse o privilégio deste lugar de ler.»
Sabia que muitos fingiam não o ouvir, o que era impossível pois colocava a voz para chegar além de todas as cabeças. Apenas não paravam, ao julgá-lo mais um dos que se perderam com o tempo.
Contudo, a mão de uma criança chegou-se à mão de um pai e travou o passo de ambos.
Foram os primeiros que pararam para o ouvir. Ficaram a olhar: um, embevecido com a melodia das palavras que não compreendia; o outro admirado com a inesperada beleza do que ouvia.
A criança largou a mão do pai e rodeou o leitor. Reparou no papel que ele segurava: não tinha uma única palavra.
«Olha, tu não tens nada escrito! Só tens riscos!»
«Tinha.»
«Tinhas?»
«Sim. Só que as palavras partiram quando as disse em voz alta e apenas ficaram os ramos da árvore onde tinham poisado. Sabes, as palavras escritas só são de quem as escreve enquanto não forem lidas ou ouvidas. Depois pertencem as quem as lê ou ouve. Algumas, teimosas, ficam no papel. Outras, livres como as aves, voam para dentro dos olhos de quem as vê quando as ouve e da cabeça de quem finge que não as ouviu.»
«E tu?»
«Eu fico feliz e parto para regressar no mesmo dia e à mesma hora na semana seguinte e voltar a olhar, a ouvir e a sentir antes de escrever as palavras que hei de ler em silêncio e dizer em voz alta para que possam voar como as de hoje.»
«E eu posso vir ouvir-te?»
«Sempre que o teu pai quiser.»
«O meu pai?»
«Sim, sozinho, é difícil que aqui consigas vir.»
«Vimos, pai?»
O pai sorriu, pegou na mão do filho e seguiram.
«Vimos, pai?»
O pai fez-lhe uma festa na cabeça, e seguiram.
Estava dada a resposta.
(Terceiro excerto de Vento do Fim)