Elsa Ligeiro
CAMÕES E A POESIA
A Poesia é a arte humana por excelência. Não porque seja maior que qualquer outra expressão artística, mas porque o humano é a sua fonte primordial.
Alguns afirmam que a filosofia é a sua ciência âncora, mas a investigação poética alimenta-se de todas as outras artes e ciências; e de tudo o que fazemos com a nossa vida humana.
É comum confundir a Poesia com a gramática e com a inspiração dos que se afirmam poetas. Mas, felizmente, também há os outros; os poetas deslumbrados com o que nos revelam com assombro de uma força superior que organiza e comanda a sua expressão. Sentem que o poema se faz por si. Que se organiza no seu interior como por magia; numa metamorfose mais-que-humana.
Como se a linguagem se organizasse e se revelasse autónoma; liberta do corpo que a constrói, num admirável espanto de liberdade (até da natureza que lhe dá existência).
Curiosa esta reflexão poética que embate na muito citada frase atribuída a Rilke (outros a Miguel Torga) a de que num poema o primeiro verso é oferecido e todos os outros são conquistados.
Na narrativa apenas o passado e o presente (e uma história comum) se apresentam relevantes, como nos ensina Walter Benjamin; dando como exemplo o escritor russo Lesskov.
Escreve o filósofo que um grande narrador tem sempre as suas raízes no povo, principalmente no grupo dos trabalhadores manuais; e que são os narradores que se movem pelos vários graus da experiência do que é comum; estreitando assim os laços com quem o lê.
De Nicolai Lesskov já pouco se fala, apesar da sua fama de autor russo muito popular no século XIX (1831-1895). Gorki explicou que Lesskov “é o escritor russo mais profundamente enraizado no povo e isento de quaisquer influências estrangeiras”, e que devia (em parte) a essa limitação o seu grande sucesso.
Narrar é encontrar o fio à meada, tentar desenrolá-la e envolvê-la em outro novelo. Uma e outra vez.
Na poesia, o trabalho é diferente; não há cronologia que lhe valha; nem gramática organizada que lhe seja útil.
A poesia investiga zonas do pensamento e dos sentidos com a mais absoluta liberdade; sem se preocupar sequer com a comunicação; e sem procurar familiaridade com quem lê. É o leitor que reconhece (ou não) as metáforas e lhes dá um sentido.
Há epopeias que se escrevem para legitimar uma existência e a sua condição de poeta, como Luís Vaz de Camões que escreveu para a corte de D. Sebastião com a necessidade de conquistar uma Tença.
Também para se exibir aos amigos que lhe pagam o vinho e o pão, escrevendo poemas de amor às damas (um poema de amor serve a qualquer dama ou cavalheiro, com nome ou sem título); mas esse exercício não o distrai do mais relevante: de outros entendimentos que acaba também por escrever: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, / muda-se o ser, muda-se a confiança, / todo o mundo é composto de mudança, / tomando sempre novas qualidades…”
O poeta escreve poemas com o corpo ferido em África e desprezado em Lisboa. Maior humanidade poética é difícil de encontrar em Portugal.
Camões representa com o seu corpo de naufrago toda uma pátria mais mítica que real.
E Sophia de Mello Breyner Andresen e Jorge de Sena escrevem sobre Camões como conterrâneos que partilham e conhecem bem o seu território:
“Irás ao Paço. Irás pedir que a tença/ Seja paga na data combinada/ Este país te mata lentamente/ País que tu chamaste e não responde/ País que tu nomeias e não nasce/…”
Não se escreve poesia para leitores ou ouvintes; escreve-se poesia para se revelar a descoberta da nossa humanidade e para dar sentido à nossa existência. Que outros se reconheçam nessa linguagem será o que a transforma em Literatura.