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12 de dezembro de 2018

José Dias Pires
PARA O JOAQUIM LEONARDO MARTINS

Lá fora alguém declamava um poema.
«Há um instante em que o olhar descansa e o coração sossega porque a vida não chega…»
Sorriu. Olhou-se ao espelho que os olhos escondem sempre no forro das pálpebras. Visto assim, parecia mais novo, mais disponível, mais inteligente ou, talvez, mais humano.
Fechou os olhos e procurou rever, em segundos, o que lhe faltara descobrir durante tantos anos.
Surgiram-lhe quase todos os nomes.
Estranhamente sentia que lhe faltava um nome, a verdadeira referência e, por mais que tentasse não chegava à superfície.
Olhou-se de novo no espelho.
«Espelho meu, diz-me, o que se passa com os instantes que guardo? Sei de todos e sinto que me falta um. Mas qual? Por onde anda? Por onde andou? És capaz de me mostrar?»
O espelho fez-lhe a vontade.
Mostrou-lhe as trincheiras do Vale de Figueira, o Bosque das Bolotas Doces de onde se via Alcains, as escadinhas do Jardim da Quinta das Lágrimas, os sobreiros da Senhora de Mércoles, o papel de carta da sua primeira estação de correios, as janelas de guilhotina molhadas pela trovoada, a ruas, os largos, os bairros, os quintais, os poços, as malhas do chinquilho. Todas aquelas coisas e lugares saíam, em catadupa, de uma caixinha vermelha em forma de coração e, rodando em espiral, regressavam ao seu sossegado repouso.
Tentou abrir, de novo, os olhos mas uma lágrima teimosa, transformada em pérola, não deixou e retomou o curso do tempo, ajudado apenas pelos ruídos e os aromas.
Desceu ao piso térreo. Colheu, no quintal, uma romã. Engoliu, sem morder, o bago mais vermelho, desejando ali o regresso da sabedoria.
Continuava a faltar-lhe um nome. O elo de todos os instantes que guardara na caixinha vermelha.
Desejou largar o Projeto e criar outro, onde não coubesse o esquecimento. Mas não podia. Ele era o Homem-Que-Guardava-Instantes, e os instantes, depois de guardados, transformam-se em eternidade.
Ninguém pode trocar o recanto da eternidade sem correr o risco de a tornar efémera.
Pensou em multiplicar a romã, supondo que multiplicaria a sabedoria. Mas teve medo de multiplicar o esquecimento e não o fez. Sentiu-se, pela primeira vez, preso ao chão e olhou os pés. Onde ainda há pouco estavam umas sandálias que descobriam uns pés andarilhos, nasceram raízes. O vento forte da manhã ou a leve brisa da tarde dobravam-no pela cintura.
Adivinhava que, se voltasse a olhar-se ao espelho, veria, em vez da cara, um monte disperso de pétalas de rosa disponíveis a ser levadas por umas mãos infantis ou sopradas pelo agitar da cauda de um gato.
Reparou que chegava com as mãos à taça de água do quintal. Tentou regar-se. Essa ousadia desafiou a brisa da tarde que se transformou em vento da manhã. As pétalas voaram, dispersas pela cidade, muitas chegaram ao Vale de Figueira, algumas foram poisar em Castelo Branco, Coimbra, Vila Nova de Mil Fontes.
Sentiu-se perdido e achado pelo mundo e continuava a não se lembrar do último nome. Sabia que sem ele não chegaria a casa e ficaria, para sempre, enraizado no quintal.
Sorriu, de tristeza, porque quem tem raízes não consegue chorar. Não sabia que no meio da praça, onde caíram as suas pétalas, estava uma criança. Sentada. Não se lembrava que essa criança tinha, sobre o colo, a caixinha vermelha em forma de coração. Ignorava que ela sonhava com o interior da caixinha vermelha, imaginando-o cheio de elevadores de todas as cores, carrosséis de feira, duendes azuis montados em cavalos encarnados.
Se pudesse, desejaria ser aquela criança e escolher um cavalo pelo cheiro. Um aroma a flor. Um cheiro a nome.
Mas não podia. Há longos minutos que sentia a necessidade daquele cheiro, daquele nome e não era capaz de o encontrar.
Deixou voar o pensamento na perseguição das pétalas. Seguiu-as até à caixinha poisada no colo da criança que estava na praça e entrou no elevador. Lá dentro havia um corredor azul e um aroma de flor. O cheiro a nome apontava-lhe o caminho. Dirigiu-se ao fundo do corredor e encontrou uma porta pequena em forma de nuvem. Forçou o pensamento a encolher-se e entrou. O perfume era cada vez mais intenso e obrigava-o a segui-lo para chegar à sua origem. Ali estava a flor azul que fora colhida pela criança. Mas não estava já a criança. Tinha deixado a praça e levara consigo a caixinha vermelha.
Sorriu de novo porque não podia chorar. O pensamento regressou ao quintal em trambolhões desafinados e com ele o vento, que se transformou numa brisa quase tornada em irritante quietude. À porta do quintal chegou a criança da praça com a caixinha vermelha entre as mãos: era um coração aberto. Dentro guardava todas as pétalas levadas pelo vento. Estendeu as mãos como quem devolve o que não é seu. Mas também era.
Tocou-lhe nas mãos, e então lembrou-se do elo que faltava.
«Bem hajas.»
Olhou os pés. As raízes tinham desaparecido. Podia voltar a casa. Foi então que o Homem-Que-Guardava-Instantes partiu. Tranquilo. Transformando-se no recanto interior de si mesmo, era agora ele que declamava o poema inicial:

«Há um instante em que o olhar descansa e o coração sossega porque a vida não chega. E o que é importante a memória aconchega numa lágrima gasta porque a vida não basta. É no instante em que alguém descansa que tudo começa para que a vida não esqueça. Dizem que é a lembrança, porque não se alcança, dizem que é saudade.
E é um pouco de tudo — é eternidade.»

Dorme bem amigo Quim.

12/12/2018
 

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