Antonieta Garcia
“ENCONTRAMO-NOS PARA UM CAFÉZINHO…”
As promessas que envolvem esta frase são sedutoras. Adivinha-se um desejo de conversa, o desenhar o início de um projeto, uma reflexão, um comentário…coisas que interessam a quem há de partilhar o encontro.
Lugar de excelência da comunicação, o “café” é a bebida identificadora do espaço… É elucidativa a lenda da bebida escurinha. Um monge passeava pelas pastagens da Arábia. Ao longe, no local onde pastavam cabras percebeu que havia algazarra. Aproximou-se. Viu nas mãos do pastor uns frutos vermelhos, e soube que o consumo dos bagos era responsável pela vitalidade do gado; caminhava quilómetros, fresco, sem descansar. Curioso o monge levou os bagos miraculosos para o mosteiro. Experimentou o sabor e a noite inteirinha orou, orou, orou, sem sono… Os períodos de preces e de meditação alongaram-se… Deus seja louvado!
Mil anos depois de Cristo, os árabes faziam uma tisana fervendo os bagos. No século XIV, desenvolvido o processo de torrefação, a bebida ficou semelhante ao cafezinho que hoje nos delicia. A partir de 1900, o consumo popularizou-se, os cafés multiplicaram-se. George Steiner considera-os marcadores relevantes da identidade europeia. Não esquece, o Martinho da Arcada associado às artes e letras portuguesas; Fernando Pessoa elegeu aquele espaço como seu. Acresce que o mesmo Poeta, hoje, espera-nos na “Brasileira”, para tomarmos uma bica, a seu lado.
Lugar com alma Steiner comenta que “O café é um local de entrevistas e conspirações, de debates, de mexericos (...). Aberto a todos, é todavia um clube, uma franco-maçonaria de reconhecimento político ou artístico-literário e presença programática... Na Milão de Stendhal, na Veneza de Casanova, na Paris de Baudelaire, o café albergava o que existia de oposição política, de liberalismo clandestino”. (George Steiner, A Ideia de Europa).
Na verdade, a sociabilidade, o convívio de intelectuais que seivam a cultura e lhe dão vida, realiza-se (ainda?) no café, nos cafés. Em torno de uma bica curta, frui-se uma pausa, busca-se um estimulante, reflete-se, estuda-se, namora-se, põe-se a leitura e a conversa em dia…
“Tomamos um café!” significa marcar um encontro desejável, para tudo. Bebida mágica torna filósofos frequentadores, proprietários e funcionários. Os verdetes de estimação, as intrigas, as desavenças locais cumprem a ordem do dia da má-língua. Os clientes habituais merecem especial atenção, nos cafés antigos e nos modernos.
- Traga-me… um carioca de café.
- Já?
- Como assim?
- Sabe? Aos 20 anos, pedem bicas duplas; aos 30/ 40, querem bica curta; segue-se o café; o café cheio; passam ao carioca e chegam ao descafeinado… Pois é…
- Quero um café, rápido!
- Para quê a urgência? Vai passar aí o resto da tarde… Tenha calma que ainda é muito novo!
O jovem não gostou da resposta. Elegeu, porém, o silêncio… Esperou com o tablet em riste, pela bebida, e agradeceu ao funcionário.
Nesta narrativa, algo mudou, está bem de ver; entre a gente nova, poucos leem o jornal em suporte de papel, a cerveja disputa o lugar primacial ao cafezinho mimado. Depois dos cafés-concerto, cafés-tertúlias, vieram o bar e o lounge… Mas ali, sentados muito confortavelmente, ninguém fala com ninguém. (É melhor perder-se frente a um ecrã? Que culto é este? A que deuses?)
No café, continuam os namoros. Muito calados. Veem imagens e textos. Cada um escolhe o que gosta? De vez em quando, mostram qualquer coisa um ao outro. E regressam à companhia da maquineta… terrivelmente sós. Um beijinho à chegada, outro à despedida… Também há os muito apaixonados, sem apoio tecnológico, e com felicidade para dar e vender . Contam-se pelos dedos da mão, mas é tão saudável esta diferença... Porquê? Ao menos, autoriza a que limpemos teias de aranha à nossa memória.
Pedia um amigo, sorrindo:
- Queria um café…com bons modos!
Lá está! Também aparecem baristas (novíssima profissão de quem aprendeu a servir café), com pouca paciência e não custa nada ensinar com calma. Aquela bebida, naquele dia, terá sido caprichada?
Na Beira, o café foi espaço masculino, ia adiantado o século XX. Alguns, batizados de “Salão de chá”, ou “Leitaria” … instituíram-se como lugar-comum, para o género feminino. No Fundão, talvez a natação, os festivais, as revelações de jovens fundanenses, em provas regionais e nacionais, tenham influenciado as vanguardistas. Porque, sobretudo, desde os anos 50 do século XX, as ditas jovens vestiam fato de banho, usavam calças, frequentavam cafés… pecados maiores noutras cidades da Beira.