Antonieta Garcia
NA ALDEIA DA BEIRA…
Quando o conheci, sem raiz a que se apegasse, nem futuro que vislumbrasse, já se deixava morrer lentamente. Perdia-se em caminhos cegos, cumpria o fado rotineiro de acordar, de comer quando havia… em demanda de nada. Personagem estranha, na aldeia beiroa, representava a comédia de viver de acordo com o talento que tinha. Chico de sua (des)graça, na maior parte da vida, pertenceu aos invisíveis, aos silenciosos mascarados de frieza, de desistência e de aridez. Quem dava por ele? Apático, palerma, pacato, mostrava-se absorto, sem expressão, permitia-se ser alvo de chacota dos que se cercam de teias de trevas e ceifam as emoções e o espírito... Que gente é esta? Chico não ouvia? Onde estava? E amanhã? Lembraria as ofensas, a malvadez que o vitimizava até doer?
Em tempos de crise, era assustador. Viam-no redemoinhar, em torvelinho, no ciminho do monte da aldeia. Abria os braços como se fossem asas… Pássaro doente, louco, espavoria bichos e gentes. Fúria de viver? Que tempestade o arrastava para choças, grutas, covis?
- Anda tontinho de todo! Alguma coisa lhe deram a beber! Era um rapaz tão bonito… Aquela rapariga deu-lhe cabo da vida. Agora, quando desatina e lhe dão aquelas coisas, é de fugir…
Nas noites de lua cheia, o vento a assobiar e os brados do Chico ao fundo, configuraram-no em lobisomem temível. Ainda era belo, os olhos perturbavam, raparigas esperavam que a sorte mudasse… Exorcizavam:
- Malditos filtros de amor e mais quem os fazia!
Contava-se que tudo se confirmara, numa noite de verão; viram-no de madrugada, estonteado, com um bocado de tecido vermelho deslizando do bolso do casaco... Era o pedaço de saia que aparecera rota, daquela moça que ele não queria? Que milagre colocara o pano no fato do Chico? Ela jurava a pés juntos que fora assaltada e rasgada… Ele negava. Não era aquela não era a menina dos seus olhos. Todos sabiam.
Casar? Justificou-se:
- Não gosto dela! Quem sabe, as minhas mãos … Não me lembro de nada!
Que febre, que furor acontecera ? Em delírio, a aldeia culpou-o. Entrou na cadeia, pela primeira vez. Quando saiu, tornou-se o excêntrico, o bode expiatório. Enchia o povoado de pesadelos. Ouvia-se:
- O Chico já aí anda outra vez!
Na sua geração, foi o louco da aldeia, o lobisomem… Dizia-se que os pais atormentados tentavam impedi-lo de sair, sobretudo em noites de lua cheia... Era um homem bonito, perseguido pela violência e pelo medo, algo de maligno no riso... Em tempos de crise, uivava, ao olhar as estrelas, as lareiras onde ardiam feitiços de namorados. Estremecia. No olhar satânico com brilho febril assomava o pecado. Ensandecia. Obsceno. Acusavam:
- Madraço, é o que é!
Odiavam-no entranhadamente. Tinha cinquenta anos, talvez. Ou quarenta. Um temor reverencial pelas gentes de poder convencia-o a afastar-se da aldeia, de vez em quando. Bem sabia que eles gostavam de o ver atrás das grades. Sabia que qualquer desacato, bebedeira farta, linguagem solta, impropérios tocando a honra dos que a não tinham… a denúncia caía nele, com verdade ou mentira.
- Foi o Chico! Anda por aí…
Tresloucava, quando a fome apertava e se via sem eira nem beira… O frio transia-o, as lojas dos animais eram mais quentes do que qualquer choça, no campo. Conhecia-as uma a uma. Quando todos dormiam, entrou em muitas, oculto pela escuridão. Raramente os bichos davam fé da chegada do intruso. Ensonado, cheio de aguardente para aquecer, acordava tarde. Descobriam-no… Furtava fruta e o que podia para comer… Bebia. Fumava. Uma corrida à GNR:
- “Não é pela fruta… Mas qualquer dia deita-me fogo à loja e à casa!”
O Chico aprendera a apavorar as pessoas, como estratégia de sobrevivência. Se os guardas se aproximavam ficava sem pinga de sangue, mas disfarçava com a máscara de riso escarninho. Contou muitos dias em celas estreitas e geladas…
Os miúdos da aldeia fugiam dele. Do lobisomem e homem do saco, do louco da aldeia. Quem arquitetara tal fadário?
Bebia, caía. Desde novo ao deus-dará, foi querendo morrer… Na alma nua, ocultava um grito infindo. “Um indivíduo do sexo masculino ficou debaixo do comboio da Beira Baixa”, disseram as notícias. A aldeia suspirou de alívio…