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9 de agosto de 2017

Antonieta Garcia
AS AVÓS - LEMBRANÇAS

Ela era roliça, morena, boca rasgada, olhos enormes. Formosa? Á primeira vista, considerando os cânones de perfeição feminina de finais do século XIX, ninguém a qualificaria como mulher bela. Uns minutos a vê-la e a ouvi-la e o que era desmesurado no rosto e corpo ganhava um encanto estranho… Seduzia pela palavra, a marota! Muitos andaram à sua volta, a arrastar a asa, mas nunca lhe faltou o jeito de se desviar de quem não interessava.
- Então Ana? Qualquer dia, com tanta escolha, ficas para tia!!!
Sacudia os braços a deitar fora a praga, e não respondia porque mulher honrada não tem ouvidos…
Até que apareceu o Domingos. Olho azul como o céu luminoso, poucas falas, alourado… Bater o vira na romaria com um par bonito de morrer… se não era o Paraíso, abria caminhos para céus em que Ana acreditava.
As raparigas da aldeia embonecavam-se cada qual à sua maneira, para atrair o olhar azul… Mergulhar naquela água límpida, naquela luz tentava, prometia pecados… arriscava más-línguas peçonhentas.
- Não tira os olhos dela! Até parece mal!
- E ela é igual! É cá uma descarada! Não o larga! No meu tempo…
A Ana, roliça e morena, sabe-se lá se bonita, já era o ai-jesus de Domingos! Dava-lhe volta à cabeça, aquilo que lhe ouvia! Rapariga desempenada, às vezes até metia medo de tão opiniosa. Olha, lá está ela a cantar…
Hei de cantar, hei de rir,
Hei de ser muito alegre.
Hei de mandar a tristeza
P´ró diabo que a carregue.
- Onde aprendeste essa?
Sei um saco de cantigas
Trago-as numa saquinha,
Quando, as quero cantar,
Desato-lhe a baracinha.
E ria, feliz! Naquele tempo, amassava o melhor pão das redondezas. Não chegava misturar farinha e água. A massa aturava-lhe voltas e mais voltas para não ficar pegajosa. Ao sair do forno, era um regalo o aroma a pão quente, ao pão nosso de cada dia…
Ana e Domingos inauguraram o namoro, meio às escondidas, porque sim. Mas a ninguém passavam despercebidos os encontros, a troca de olhares, o baile mandado nos adros das capelas, eirados, fontes: quem bem se quer na rua se encontra…A aldeia acabou por aceitar o parzinho.
No verão, uma tristeza triste, triste apoderou-se de Ana. Não era a mesma. Desviava-se de Domingos, fugia quando o via ao longe… Olhos vermelhos acusavam lágrimas de dor.
- Que aconteceu, Ana?
Não respondia. Os olhos de Domingos perdiam luz.
À aldeia tinha chegado, para férias e negócios, o senhor que-tudo-podia. Maldito! Moça nova era para usar e deitar fora. Temiam-no.
- A única coisa que vi fazer aos ricos foi tirar a honra às filhas dos pobres! – Explicava a professora do lugar.
Dono de terras, líder político, numa noite, durante a entrega do pão, agarrou Ana, violou-a, largou-a. Amaldiçoada a hora! Depois, o ventre de Ana arredondou. Chorava, perdida! Desabafou com Domingos. Deixou-a. E agora Ana? Enlouquecida, andava de caminho em caminho, em demanda de si, a tentar entender a má fortuna…
Quem a humilhara, escapulia-se, sacudia a água do capote. Quando o encontrou, jurou que o mataria se não apoiasse o futuro da criança que trazia no ventre. Corajosa de mil coragens viu o medo, a cobardia nos olhos lamacentos do senhor. De rabo entre as pernas afastou-se:
- Aguarda!
- Tem pouco tempo! O meu filho nasce em abril! Daqui a cinco meses!
Pouco tempo depois, Domingos voltou. Abeirou-se, falou em casamento. Ana acreditou no milagre. Entendera a injustiça? Que culpa tivera ela?
Trataram dos papéis. O matrimónio foi na Igreja de São Pedro. Domingos começou a trabalhar na construção da Linha da Beira Baixa. Entrava em casa dinheiro vivo. Meu Deus, mas que é do amor entre os dois? Uma urdidura pesada aperreava-lhe o coração… Uma menina veio ao mundo. Parecida com quem?
Domingos nunca justificou a mudança do seu comportamento. Ana pensou, pensou, decifrou. O silêncio da violação garantira um emprego na ferrovia e obrigara à perfilhação da menina. O senhor comprara o segredo, apagara a narrativa real. Que náusea…
Uma tristeza infinda assentara arraiais entre Ana e Domingos. Às vezes, demente… saía de casa. Regressava amargurada, muda, apática, ausente de si… um fantasma! Quanto tempo? Até que a neta, aliviada, anunciasse:
- A avó está melhor! Já fala!
Domingos não queria saber. Nasceram-lhes mais crianças. Filhos de ambos. Mas o silêncio, a solidão, os desentendimentos encheram de desassossego e de absurdo a vida de Ana e Domingos. O senhor… era dono (ou quase!) da aldeia e das pessoas.

09/08/2017
 

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