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6 de setembro de 2017

Guilherme D' Oliveira Martins
EDUARDO PRADO COELHO, JÁ DEZ ANOS…

Já decorreram dez anos desde que o Eduardo Prado Coelho nos deixou e no entanto a sua memória, a vitalidade do seu exemplo continuam bem presentes, sendo justo que devamos recordá-lo, como ele gostaria. «Tudo o que não Escrevi» de Eduardo Prado Coelho (2 volumes), edições Asa, 1991-1992, é um retrato em forma de diário de uma das personalidades mais interessantes e ativas do meio cultural português da passagem do século XX para o século XXI. Fora de qualquer ideia retrospetiva, a sua preocupação fundamental estava no culto de uma atenção desperta para o tempo e a realidade que o cercava. Não conheci mais ninguém que estivesse tão atento ao debate de ideias e ao surgimento de novos contributos e de novas perspetivas. No Centro Nacional de Cultura contei sempre com a sua participação ativa nas iniciativas para que era desafiado. Quando o Chiado ainda estava morto, sob os efeitos do terrível incêndio, lançámos as festas no Chiado (na altura, duas por ano). Era um tempo em que ninguém estava certo de que seria possível dar vida àquela capital de Lisboa, na expressão de José-Augusto França, e o Eduardo aceitou o desafio dos cinco livros, cinco autores – para trazer aqui os mais interessantes escritores, ensaístas e poetas. E com que zelo e prazer fazia o seu trabalho… Muitas vezes, os autores que indicava eram ainda pouco conhecidos, mas o tempo veio a provar que o Eduardo tinha um faro verdadeiramente raro para descobrir o que tinha realmente qualidade. Lembramo-nos que, relativamente a um autor hoje consagradíssimo, tivemos 5 pessoas da primeira vez que foi escolhido – mas um ou dois anos depois já havia para a mesma pessoa quase uma centena de presenças… O tempo passou e o Chiado renasceu, pujante, graças a uma extraordinária convergência de esforços e de vontades – entre os quais Siza Vieira teve um papel crucial. E se lembro o entusiasmo de Eduardo, a verdade é que os livros e a cultura foram âncoras essenciais para que o Chiado tenha renascido mais forte do que nunca… O certo é que a ideia de cultura, que sempre esteve presente na sua ação, tinha a ver com a criatividade, a atenção e o cuidado. Educação, formação, ciência, pensamento, cidadania ativa, responsabilidade política, antecipação do futuro, ligação entre tradição e mudança – eis o que o ensaísta soube cultivar e aprofundar (e essa ligação íntima a Eduardo Lourenço deve ser lembrada especialmente). Se nos lembrarmos do seu contributo para os primeiros passos do estruturalismo entre nós, verificamos, antes do mais, a atenção aos novos caminhos, sem se deixar aprisionar pelas leituras exclusivas ou unilaterais. O primeiro entusiasmo dava lugar a outras influências e outros contributos. O mesmo se diga relativamente ao pensamento marxista ou depois à lógica liberal-libertária.
O que Eduardo Prado Coelho tinha era uma curiosidade genuína pelo mundo das ideias. Daí a capacidade de se apaixonar por elas, mas simultaneamente também a disponibilidade crítica para abrir novos capítulos e novas influências. Deste modo, foi um cultor de um pensamento plural, aberto à diversidade. Esse o balanço geral do rico percurso intelectual que assumiu e que teve diversas facetas. E se alguns salientam este ou aquele momento mais marcado por determinada opção, a verdade é que o conjunto da intervenção do ensaísta (que ele foi essencialmente) dá-nos um panorama de abertura à diversidade – e de capacidade para se pôr em causa ao descobrir novos caminhos para a sua reflexão. Quando apoiou Maria de Lourdes Pintasilgo em 1985 teve a lucidez de pôr a ênfase no que essa candidatura tinha de mais novo e enriquecedor, salientando a importância da convergência com o movimento de ideias que Mário Soares pôde suscitar e depois assumir. Fui testemunha dessa fase e sei da importância que teve esse diálogo na renovação das ideias da esquerda democrática, numa fase especialmente difícil, em que havia o risco da fragmentação. A filosofia política anglo-saxónica, a segunda esquerda francesa, a nova escola de Frankfurt punham-se em confronto e em diálogo – num momento em que F. Fukuyama e S. Huntington não poderiam ser lidos de modo simplista, já que o sistema de polaridades difusas gerado no fim da guerra-fria e na queda do muro de Berlim abria caminho a uma imprevisibilidade perigosa. Hoje sabemo-lo: «Brexit», Trump, Putin, Síria, Estado Islâmico, República Popular da China, Coreia do Norte e assim sucessivamente… E fica-nos a grande curiosidade de saber que teria dito o Eduardo perante Houellebecq no seu romance «Submissão», para além da lógica da «Espuma dos dias» de Boris Vian…
Estará a Europa condenada à fragmentação e à irrelevância? Muitos são os temas para os quais o Eduardo Prado Coelho seria, certamente, um ativo estimulador de ideias – a partir da capacidade de compreender como o diálogo do pensamento pode ser um fator de progresso e emancipação, compreendendo que nunca descobriremos uma qualquer via de reconciliação definitiva… Não esqueço que a última vez que falámos, poucos dias antes da sua morte. Disse-me que se sentia melhor e que estava disponível para continuar a animar uma iniciativa centrada na literatura… Estava otimista e parecia com uma energia renovada, eis por que razão foi um choque receber a notícia. O certo é que a última lembrança do Eduardo foi positiva, com o seu entusiasmo de sempre… Por isso, escrevi na altura um texto em que recordava «Emílio e os Detetives», uma narrativa juvenil – ciente de que a ficção era para ele uma prova de vida… Por isso, costumava lembrar as suas lágrimas de criança quando leu a descrição de Salgari da morte de Sandokan, na célebre coleção da Romano Torres, envolvendo o inconfundível português Gastão de Sequeira. Na reta final da vida assumiram uma especial importância as cartas que trocou com o Cardeal Patriarca D. José Policarpo, onde a independência de espírito, a inteligência e a compreensão do mundo estavam bem presentes. No seu diário, confessa a dificuldade da relação com o mundo da vida. Há muitas perplexidades, mas sempre a preocupação com o ter os olhos abertos perante a realidade humana: «Há uma frase que me tem seguido pela vida fora. Qualquer coisa como “não tens vida interior”. Que significa? Não propriamente que me seja atribuída uma ausência de “pensamento interior” - de modo algum. Mas perpassa a suspeita de que esse pensamento se desenrola numa espécie de impessoalidade indiferente aos relevos afetivos de todos os dias. Confesso que isto me espanta, porque se alguma coisa eu sinto é que tudo aquilo que penso se modela sobre um corpo afetivo extremamente atento e vibrátil. Tudo o que seja um pensamento segregado do quotidiano me parece insignificante».

06/09/2017
 

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