Lopes Marcelo
MILHO REI!
No nosso mundo rural, a pauta da cultura popular abrange tradições de grande valor etnográfico. Nesta época do fim do verão, realizava-se a desfolhada. A cultura do milho era muito importante, quer para a alimentação dos animais, quer para a alimentação humana, destacando-se as broas e as papas de carolo.
Aproximando-se o fim do verão, já com as maçarocas bem formadas, as barbas esfareladas e as canas secas, estas eram cortadas e encostadas à volta dos troncos das árvores, podendo aí ser descamisadas ou serem reunidas na eira de pedra onde, bem estendidas, onde acabavam de secar para aí se proceder à descamisa, trabalho colectivo, de entre ajuda solidária. Os familiares e os vizinhos do agricultor, em voluntária troca de trabalho, juntavam-se na eira de pedra para a descamisa do milho.
Em geral, tal tarefa era realisada aos serões iluminados pela lua cheia, pois o dia era escasso para os muitos afazeres da época estival. O grupo, em comunidade de trabalho, convivia em sã alegria, enquanto realizavam a descamisa das maçarocas. Qundo surgia uma de cor diferente, reluzente de ouro escuro, quem a descamisava logo gritava de alegria: - milho rei! E, entre o entusiasmo geral, tinha o privilégio de dar e receber um beijo a quem escolhesse, que não podia ser recusado. Através de tão belo e ingénuo costume, ficava-se a saber que por ali havia, ou começava, algum namoro.
Estas tarefas, prolongavam-se por vários serões, em alegres convívios, pois que o trabalho era leve e realizava-se em alegre convívio. O agricultor, proprietário do milho, correspondendo à graciosa colaboração, partilhava com todos uma ceia doce onde abundava o arroz doce e as papas de carolo acompanhadas de vinho tinto. Em ambiente festivo, surgiam cantigas populares, destacando-se o espontâneo cantar à desgarrada, acompanhada pelo som alegre da concertina. Um dos homens, com queda e gosto para cantar, com a primeira quadra desafiava a mulher que prontamente lhe respondia, encadeando-se o alternado despique, até tudo acabar em bem.
Cantemos desta maneira Ó cantador das esquinas
Esta nossa desgarrada. Não te gabes folião.
Vê lá bem ó companheira Tu a cantar desafinas
Não fiques engasgada. Não te metas nisto não.
Acerta tu o compasso Ai se eu fosse teu irmão
Anda não fujas do tom. Tinha vergonha de ti.
Livra-te deste embaraço A ceifares com que então
Escuta o acordeom. De joelhos bem te vi.
Pois cantar é muito bom Sei tanta coisa de ti
Mas não és tu que me ensinas. Que eu até me envergonhava.
Conheces o acordeom Perfiro ficar por aqui
Eu conheço as concertinas. Ó meu cara deslavada.
Já o meu avô cantava Eu não sou nenhum miúdo
Sabia cantar o fado. Estou aqui só pr´a ver.
Tua família berrava Há gente capaz de tudo
Lá na serra atrás do gado. Mas podem-se arrepender.
Olha lá, tu está calado, Já te deitaste a perder
Que és um pastor de raíz. Vê lá não percas o pio.
A dormir junto ao silvado Para o fado cá no meu ver
O gado andou por onde quis. Utilisa o assobio.
Foi coisa que eu nuca fiz Na minha voz eu confio
Quem é que te contou essa? Hei-de cantar sempre assim.
Mas se tens coragem diz A tua voz eu aprecio
Quem inventou tal conversa? Mas já vamos dar o fim.
Não te digo, fiz promessa, Ofereço-te este alecrim
Quem viu pediu-me por tudo. Prova da nossa amizade.
Espera, não tenhas pressa, O que nós somos enfim
Que vão chorar-te o entrudo. Toda a nossa gente o sabe.
É a recriação desta tradição popular rural, realizada com o apoio do Rancho Folclórico de Aranhas, que aqui se ilustra: