MARIA DE LURDES GOUVEIA BARATA
ANTÓNIO SALVADO: ACOLHIMENTO DA ESPERANÇA NOS LIAMES DO AMOR
O título do novo livro de António Salvado - DE TÃO CANSADA A ESPERANÇA SEGUIDO DE LIAMES – abre com poema homónimo, começando por um tom deceptivo delineado de solidão, insónia, sombra, num acordar na manhã com a esperança arredada do eu poético, o que não é habitual. A esperança, se fosse presente, teria um perfil acolhedor, amoroso, inclinado no ser («inclinado sobre a minha face»), porque é companheira fiel. Porém, o último verso prenuncia um renascimento: «Eu ficarei à espera», como diz ainda no poema «Porque és a vida»: «Continuamente a ti / regresso porque a vida / em ti colheu a música serena / que me atravessa o peito em todos os momentos.»
Os poemas vão-se entretecendo numa antinomia organizada em Decepção e Comprazimento, firmando-se nesta última linha «Nascimento» (p.10), com aventura cálida, fragrâncias matizadas, chilreios prolongados, serenidade, «germinação infinda da alegria». Aventura é lexema reiterado para exprimir o caminho da vida, desde o passado ao presente, havendo perdido contornos de «percorridas sendas» («Sendas», p.15) na «aventura infinda» («O ar me pesa», p.22) – será sempre aventura, mas uma aventura que terá fim com o fim do tempo de viver. Na linha de Comprazimento estão o Encontro da amizade («Encontro», p. 25), as «mãos que se tocaram de leve» («Para a memória do boulevard», p.26), a imagem dum tu que se torna perene por mais adversidades que surjam («Perenidade», p.30), os harmónicos lampejos (poema homónimo, p.31), que se envolvem nas ervas que crescem, nas cores, nos brotos das árvores, nos «bichos saindo de casulo», nos sinais dos frutos, enfim na pujança da Natureza, numa conjunção com lindas raparigas, todos os elementos físicos e humanos, em que «vibram acenos do futuro», terminando o poema com o verso intenso de emoção: «Como tudo o que é vivo se namora!», instalando a dimensão dum júbilo vital, num equilíbrio da Natureza sempre renascendo em analogia com a vida que torna presente a esperança. No mesmo trilho inscreve- -se o poema «Ressurreição» (p.45), cujo último terceto - «Harmonia da vida a crepitar / por entre secas ervas acinzadas / e sobre tudo o mais um céu azul!» - aporta a ideia do estremecimento de viver vibrantemente, porque o viver não é apático, sobrepondo-se um céu azul apesar das ervas secas, apesar de tudo, carreando esse azul, no contexto, um amor à Natureza, uma visão positiva da vida na vertente natural e humana.
Apesar de sulcos da separação e da ausência, apesar do adeus de partidas - «e lentamente o barco se afeiçoa / ao aceno de lenços brancos, brancos» («Lenços brancos», p. 49) – apesar do tempo fugaz, apesar do olhar da morte, motivos que se incorporam na linha da Decepção, emerge a esperança, mesmo que débil (p.1), mesmo que miragem (p.44). Até na homenagem às palavras («Na ânsia enorme», p.32) se manifesta («porque dentro delas novos mundos descubro»), mesmo que o canto seja uma ilusão («Destino», p.59).
O poema que finaliza a primeira parte da obra, «A Palavra Esperança», apresenta-se com treze quadras, falando da presença contínua dessa palavra ao longo da vida, tornando a vida mais vida no encantamento de incentivo dum caminho percorrido, assumindo-se num crescendo de homenagem e celebração da esperança, edificando um hino que invoca a deusa Esperança no final, num querer e num pedir a sua presença sempre. Em todos os lugares, em todos os tempos da sua vida o eu poético a encontrou, em todos os lugares e tempos a quer encontrar. A estrutura do poema ganha força crescente, num ritmo que arrasta esse crescendo e nos associa a uma intertextualidade formal com o famoso poema de Paul Éluard «Liberté».
Ter esperança é projectar-se no futuro, é conseguir confiança, é não deixar morrer os sonhos, é um poder. Para mim, leitora, dois grandes exemplos de poetas da esperança são Miguel Torga e António Salvado. A esperança vem resgatar a teimosia de entrega à vida no fascínio que é preciso saber descobrir. António Salvado pode trazer-nos uma esperança cansada, mas traz sempre uma esperança que se renova. Recuperar a esperança é reconstruir no dia a dia o caminho que tem cardos e rosas também, aprendendo com a Natureza essa sempre possibilidade de renovação. Do amor pela vida nasce a esperança e a esperança abre os horizontes do amor.
O amor é motivo na obra salvadiana, um amor que se manifesta pela Natureza, pelo ser humano em geral numa dimensão solidária e no eterno eu- -tu, tornando-se base envolvente dum perfil de humanidade. Ocorre sobretudo nos poemas de Liames, em que predomina o amor eu-tu, poemas de intensidade lírica e traços dramáticos, que tornam insistente a presença de uma figura feminina, que o eu poético procura, evoca, com sentimento fiel e perene, apresentando-se embora como «o possível dos impossíveis« («Como jovem perdida», p.78) ou «miragem d’ hesitações» (ibidem) . A ausência é sempre presença pela espera: «Dia sem cor. A sua ausência pesa / como um fardo d’angústia sobre o peito» («Dia sem cor», p.82), ausência que se torna exílio («Tal um exílio…», p.80), um desespero («Por hoje perderei qualquer esperança / de te sentir, contigo comungar / que seja um breve instante de alegria.» («É de manhã…», p.83), num quotidiano de espera, em que presença é alvor de esperança, prazer (p.92), alegria (p.93), que se agregam à linha Comprazimento em antinomia com a Decepção que se concretiza em ausência. O aparecimento da amada é «aparição dum só instante» («Por um instante…», p.103), num simultaneamente triste e ledo momento («Provocante manhã…», p.102). Esta amada feita de ausência («Feita de ausência…», p.92) é ainda nostálgica figura (p.93), luz débil de promessa (ibidem), escultura (p.103), altiva estátua (p.115), enigma e mistério (p. 105), primavera e luz (p.115), nuvem bem ligeira e brisa (p.120), será sempre um eterno retorno (p.107), flor perene (p.84), porque é deusa e Beleza (p.88). A figura feminina, misteriosa, tecida no sentimento do eu poético, tem sortilégio de eternidade na adoração silenciosa do eu, quase em monólogo interior, sonhando um encontro eu-tu, embora com débil esperança, perspectivando-se o jogo dos olhares, o sorriso e a alegria, os gestos, o menear do corpo, havendo marcas de erotismo no desejo e no querer. A mulher amada é ainda voz de bom dia, que aparece em cinco dos quarenta e nove poemas de Liames (pp. 85, 91, 95, 108, 114), saudação que assinala a presença da figura feminina, mas simultaneamente alarga a distância eu-tu por se tratar dum simples cumprimento, que, no entanto, musica todo o ar (p.91), uma voz que se transforma em acordes da manhã (p.92), com impregnação erótica em «Se me chamasse…» (p.108) - «Breve bom dia nos unindo os lábios / em sussurro de acorde e timidez» - um bom dia por si só insuficiente para o querer do eu poético (p.114). Subjaz uma acção comovente que envolve o sofrimento do eu no drama do amor. Liames proporciona emoção ao leitor, envolvido e arrastado numa corrente de densidade lírica e dramática.