MARIA DE LURDES GOUVEIA BARATA
A NOSSA CASA
«A gente tem uma casa ali… uma vida inteira… são quarenta anos, animais e tudo… uma vida inteira… não sei explicar…» - são as palavras de uma mulher a quem o fogo devorou a casa, devorou essa vida inteira que refere. As imagens televisivas mostram que nada ficou, mas a mulher ainda utiliza o presente: a gente tem uma casa ali… É um testemunho, entre vários que houve, seja de Pedrógão Grande, seja da Sertã, de Mação ou outro lugar qualquer em que o incêndio se transformou no Inferno de chamas a tragar pessoas e bens. Da maior e mais terrível perda, que foram as vidas humanas, não vou agora falar. Escolho a Casa abrasada, reduzida a cinza, reduzida ao nada. Esse testemunho levou a reportar-me às palavras que ouvi em ano anterior: Fiquei sem nada, apenas o fato que tenho no corpo. Havia umas fotos dos meus pais, do meu casamento e outras de família, que nunca mais vou ter… Foi tudo embora com a minha casa… a minha vida toda…
A casa. A casa de muitos anos é a vida inteira guardada nos recantos dessa casa, que se impregna de momentos evocados em fotos, em objectos que se guardam como recordação, em quadros onde se poisaram os olhos, em móveis que se usaram ao longo do tempo, em livros que ocuparam o lugar de maior ou menor destaque – lembranças que se entranham através da casa tatuada de gestos do tempo, de lugares outros marcados no lugar da nossa casa, o espaço privilegiado de viver a vida.
A casa ganhou uma simbologia de centro do mundo (tal como a cidade e o templo), projectando-se como imagem do universo ou como identificação do próprio corpo, usual no budismo. Gaston Bachelard atribuiu uma importância fundamental à casa, com significação do próprio ser interior, estabelecendo uma analogia com o corpo e o estado de alma, desde o telhado e o sótão (cabeça) aos andares inferiores, assunto de interesse que considero não vir agora a propósito.
A casa, ainda segundo Bachelard, é símbolo feminino no sentido de refúgio, de protecção, de mãe, de seio maternal. Efectivamente, assume-se como força protectora o ficar em casa, quando faz muito frio ou muito calor, quando há situação de perigo lá fora (as pessoas devem manter-se em casa… anunciam meios de comunicação em nome das autoridades). A casa é o lugar da segurança para defender dos perigos.
Na nossa casa desenvolvemos rituais do viver, que nos levam a uma familiarização com recantos e objectos que a integram e significam por si mesmos momentos de vida, com um tempo e um lugar que se inscrevem no lugar casa, a nossa casa. A casa de infância torna-se ponto de partida para as primeiras descobertas da vida, para depois conhecer outro mundo, mas voltando sempre a uma raiz. Ficam pelos cantos sons difusos de canções de embalar, de risos, de choros, de conversas, de primeiras histórias. Por mais simples que seja, a casa funciona como um templo sagrado em que dia a dia se vai construindo a vida, uma base de vida de onde se parte para outras construções. Torga assume como seu casulo a terra natal, S. Martinho de Anta: «Deixei que fossem ver sozinhos o térreo casulo onde vivo latente, por mais longe que esteja» (D.XI, p. 200). Passa-se da casa à comunidade aldeã envolvente, depois à pátria portuguesa, depois ao mundo. Por isso diz no Diário XIII (1983, p.151): «S. Martinho de Anta, 17 de Setembro de 1980 – Ao alargar-me os horizontes do mundo, com necessidades de toda a ordem a que já não posso renunciar, a vida fez de mim um ser ubíquo. Tenho aqui as raízes de suporte e lá longe as pastadeiras…». Mia Couto, cuja obra apresenta a casa como um motivo recorrente, reafirma a importância das vivências na identidade do eu e edifica a ideia de envolvimento na vida através da casa que se habita e à qual vai dando uma alma: «Quem constrói a casa não é quem a ergueu mas quem nela mora» (Terra Sonâmbula). Habitar a casa contém uma ideia de unidade, um reflexo do universo num todo espacial, a nível físico e psicológico, com sentimentos e emoções.
Podemos alargar este conceito de nossa casa ao universo, porque nele se enquadra a nossa casa-Terra, que não é preservada nos dias que correm. Esperemos que não aconteça uma desgraça em que se aplique o «casa roubada, trancas à porta», pois pode não haver trancas para a casa-Terra…
A nossa casa é identificação que vem do passado, vivida no presente e nos sonhos do futuro.
Termino com o desejo de me solidarizar com a dor do testemunho do início, através do extracto dum poema de Francisco Bugalho, «Casa Abandonada»: Minha saudade não larga / Certa casa abandonada. / E sinto, na boca, amarga, / Essa lágrima chorada / Quando a deixei... (…).