Valter Vemos
O presidente e os governos
Sempre que se aproximam eleições ou quando se agudizam crises políticas sobe de tom a discussão sobre o papel do Presidente da República no nosso sistema político. Qual é afinal o papel do presidente no edifício político do país? E qual o seu papel no desenvolvimento e implementação das políticas públicas?
O exercício de cada titular do cargo tem servido para sustentar teses de manutenção ou de maior ou menor reforço dos poderes de intervenção do presidente, umas vezes no papel que lhe está atribuído de árbitro da ação política, outras vezes de fiscalizador das políticas públicas desenvolvidas pelos governos e outros atores político-institucionais. Curiosamente poucos têm sido os defensores de uma diminuição dos atuais poderes do presidente, apesar do exercício do cargo até hoje ter sido objeto de acentuadas criticas por setores diferenciados da política portuguesa e de pesados confrontos com alguns governos nos mandatos de todos os titulares Basta citar o caso da criação do PRD com Eanes com Soares no governo, as presidências abertas de Mário Soares com Cavaco no governo, a destituição por Jorge Sampaio do governo de maioria de Santana Lopes e Paulo Portas e o afrontamento de Cavaco ao governo socialista de José Sócrates.
Mas, a história nem sempre tem sido clara na atribuição da razão aos presidentes ou aos governos. Se tal aconteceu de forma razoavelmente clara em desfavor de Eanes e em favor de Sampaio, já o caso de Soares é mais controverso e o de Cavaco ainda merecerá um julgamento mais afastado. Não sabemos que juízo futuro predominará sobre a ação de Cavaco Silva como presidente, mas, para já é sabido que foi, até hoje, o presidente com mais baixas taxas de popularidade e aprovação no seu segundo mandato. A que se deve tal facto?
Vários comentadores têm associado isso às infelizes intervenções de Cavaco no âmbito das medidas tomadas pelo governo de Passos Coelho e Paulo Portas no respeitante ao corte dos salários e das reformas e do aumento de impostos. É verdade que tais intervenções permitiram vislumbrar um presidente pouco solidário com as dificuldades dos portugueses e até um pouco “egoísta” nos seus direitos, aparentando uma dualidade de critério entre si próprio e os portugueses que representa. Mas, não creio que fosse isso a razão de fundo da demonstração de desconfiança que os cidadãos têm afirmado, mas, tão-só o elemento que despoletou o que estava já em crescendo no sentimento geral.
O que levou os portugueses a questionar a confiança no exercício de Cavaco Silva foi a gritante e escandalosa dualidade do seu comportamento com o governo Sócrates e o governo Passos Coelho. Com a emergência da crise financeira e depois económica e o aparecimento de algumas medidas de austeridade, no âmbito dos famosos PEC, Cavaco foi aparecendo aos portugueses como uma referência de oposição a tais medidas, representando pois a ideia que existiria outro caminho com menos sacrifício para ultrapassar os problemas. As suas críticas implícitas e explícitas às medidas do governo foram aumentando assegurando a confiança dos cidadãos nesse possível caminho. Ficou célebre a sua frase de que “há limites para os sacrifícios”, tendo essa posição culminado no inqualificável discurso de tomada de posse do segundo mandato. Cavaco Silva tornou-se no maior adversário das medidas difíceis do governo, sustentando uma alternativa que afirmava não serem necessárias tais medidas como congelar salários ou pensões ou aumentar impostos. Muitos portugueses mesmo desconfiando de Passos Coelho e Paulo Portas, caucionaram essa alternativa, devido à posição do presidente.
Evidentemente que o agudizar da crise levou o novo governo a tomar medidas muito mais radicais e gravosas do que as tomadas ou propostas pelo governo anterior. A inversão do discurso foi imediata. Passos Coelho e Paulo Portas passaram a dizer rigorosamente o contrário do que haviam dito. E muitos portugueses até aceitaram isso. Uns porque achavam verdadeiramente que as condições tinham piorado radicalmente naqueles dois ou três meses, outros pela costumeira cegueira partidária que os leva a aceitar tudo e o seu contrário quando vindo do seu partido ou do seu líder, outros porque pura e simplesmente não gostavam de Sócrates e consideravam legítima qualquer estratégia que o afastasse, mesmo que fosse enganar deliberadamente os portugueses. Outros ainda porque interiorizaram o discurso político repetido à exaustão pelos media sobre “a inevitabilidade dos sacrifícios” e a “ausência de alternativas à austeridade”.
Mas, se tais motivos levaram muitos a aceitar e até apoiar a mudança de discurso dos líderes partidários e do novo governo, aqueles que tinham formado opinião ou posição com base num vínculo de confiança com o presidente e no seu discurso sobre “os limites para os sacrifícios”, sentiram-se enganados. Alguns até desculparam facilmente os governantes, mas, não Cavaco Silva quando o discurso deste se inverteu. Afinal contradizer hoje o que foi dito ontem, até podem tolerar aos líderes partidários, mas não ao presidente da República. O vínculo de confiança foi aí quebrado e depois foi-se degradando à medida que o discurso do presidente se tornou cada vez mais contraditório com o anterior e assumiu até contornos que foram interpretados como alguma mesquinhez política. E o sentimento de engano e rejeição consolidou-se.
Cavaco Silva foi incoerente, inconsistente e manobrista na sua ação como presidente e os portugueses perceberam isso e retiraram-lhe o vínculo de confiança que os presidentes da República têm merecido. Paz ao seu mandato que, aliás parece ir terminar de forma imprevisível com mais uma daquelas decisões que ninguém de bom senso compreende, ou seja, manter as eleições em Outubro, numa fase em que ninguém, incluindo ele próprio, tem poderes para tomar decisões se as mesmas não gerarem uma maioria de governo.