Fernando Raposo
Virado do avesso
Passos sempre sonhara vingar-se de Abril.
Ganhara o partido e empurrara “borda fora” todos quantos lhe pudessem barrar o caminho. Na altura, ainda Miguel Relvas se agitava, de telemóvel na orelha, convencendo este e aquele. Era o seu mais fiel seguidor. Há até quem diga que este é que foi o “fazedor da coisa”. Também Relvas estava tão desejoso quanto Passosde se vingar e espezinhar Abril.
Passos convidara Paulo Teixeira Pinto, mais dado às coisas do pensamento, para que limpasse do papel tudo com quanto Abril prendara os portugueses.
Paulo saíra-se bem de tão “árdua” tarefa ou não lhe corresse também no sangue o ódio de vingança que alimentara sobre Abril.
Ninguém como Francisco Louçã antevira o que aí vinha, corria o ano de 2010 da Graça do Senhor: “O PSD de Passos Coelho e de Miguel Relvas, entregou a revisão constitucional, a preparação do seu projecto, a um ex-banqueiro que tem uma visão extremista e radical da sociedade portuguesa” e cuja proposta tem como objectivos “promover o desemprego, facilitar o despedimento, enfraquecer a saúde, enfraquecer a educação pública para aumentar o negócio da educação” (TVI 24, 13-09-2010).
Logo que se viuno lugar do timoneiroe sem interlocutor bastante para a revisão constitucional, Passos, teimosamente, foi trilhando um caminho sinuoso e à revelia da Constituição, cumprindo assim os seus intentos.
Sob o olhar cúmplice de Cavaco Silva, a reverência acrítica dos deputados da maioria e empurrão dos “fazedores de opinião” de um despudorado liberalismo, Passos foi virando o país do avesso.
Decorridos que são mais de quatros anos, tão longos quanto espinhosos, desde que Louçã nos avisara sobre as intenções de Passos e Relvas, os portugueses estão agora muito mais apreensivos e receosos quanto ao futuro.
Os Serviços que, por imperativo de Abril, o Estado tem o dever constitucional de prestar aos cidadãos têm-se vindo a degradar a um ritmo vertiginoso.
A recente reportagem de Ana Leal, da TVI, sobre “o caos nas urgências de 15 hospitais” é a expressão limite do desmantelamento do Estado Social e que Ferro Rodrigues já qualificou de “pavorosa indignidade”. Enquanto para a ministra das finanças, os cofres estão cheios, a abarrotar, há falta de médicos e enfermeiros nos hospitais; a falta de roupa, papel, fraldas e detergentes é agora recorrente. Sob o olhar atento de Ana Leal, as macas amontoam-se nos corredores e os doentes são forçados a esperar horas infindas para serem observados.
Em entrevista à TVI 24, a jornalistacomparou o que encontrou aos “hospitais de campanha depois de um tsunami ou de um terramoto”.
Este cenário de desolação e decadência a que Passos conduziu o país, repete-seem todos as áreas sociais (educação, ciência e ensino superior, segurança social, …).
A pretexto da criação de emprego para os mais novos, Passos fragilizou a relação contratual entre trabalhadores e patrões com grave prejuízos para aqueles e ganhos para estes.
Segundo a OCDE, citada por Glória Rebelo, professora universitária, “Portugal a seguir à Espanha e à Grécia, tem sido o país onde o desemprego estrutural mais tem aumentado desde o início da crise financeira…” (Expresso, 18-04-2015, 31).
Com as alterações ao código do trabalho, o desemprego de longa duração disparou. Flexibilizaram-se os despedimentos, reduziram-se as indemnizações ou compensações e as empresas, valendo-se disso, dispensaram os “trabalhadores mais antigos” e substituíram-nos por contratados a prazo e com baixos salários. Daí que o número de trabalhadores pobres tenha aumentado. Segundo Glória Rebelo, interpretando os dados do Eurostat, “em 2013, em Portugal o risco de pobreza ou exclusão social afeta 27,4% da população”, ou seja, muito perto dos 2,9 milhões de portugueses.
Ainda não satisfeito com tudo isto, Passos já “ameaçou” os reformados com o corte de 600 milhões na Segurança Social, “para manter a sua sustentabilidade”. Sustentabilidade que quer justificar à custa do corte nas pensões e reformas que, ao longo de uma vida de trabalho, foram sendo constituídas a partir dos descontos dos trabalhadores.
Daí que não se compreenda que o mesmo Passos proponha a redução da TSU (taxa social única), taxa paga pela entidade patronal à Segurança Social, em função do vencimento dos trabalhadores. Ora a fragilidade da disponibilidade orçamental da Segurança social decorre, de entre outras razões, da elevada taxa de desemprego, da precariedade do emprego e de baixos salários, das erradas aplicações das reservas.
Reduzir, no actual contexto social e económico, a TSUe, a par disso, impor um limite aos descontos para o sistema público de segurança social, é um passo perigoso e muito imprudente, por significar a destruição do próprio sistema pela sua consequente descapitalização, em virtude da transferência dos recursos dos que mais ganham para o privado (banca e seguros), assegurando-se assim, como refere Adão e Silva, “privilégios a privados” (Expresso, 18-04-2015, 30).
É preciso dizer basta e voltar a assumir, com clareza e determinação, políticas que promovam e assegurem a justiça social, retomando novamente o caminho de Abril.