Antonieta Garcia
A sardinha arrecada pergaminhos
É símbolo de Lisboa, pegou-se com os santos populares, alimentou-lhes as festas, serviu de inspiração a artistas e já quase ombreia com a lagosta, nos custos e nobrezas. Primas em primeiro grau disputam a primazia, sem que alguma se proclame vencedora. Há diferenças: sua excelência, a lagosta, não vem para a rua de velhos bairros, alfacinhas ou outros; radicou-se em restaurantes, cervejarias e conhece o manual de etiqueta que deve seguir; a sardinha sai para os largos, para ruas e vielas, mistura-se com entremeada, entrecosto, febrinhas e, a maioria espera que, pelo São João, pingue no pão para deleitar…
Comida à mão, acompanhada de sangria ou vinho tinto, com o fado a tiracolo, dizem que tem outro sabor… Terá! Manjar de verão – dos meses sem r: maio, junho, julho, agosto – Santo António, São João e São Pedro não dispensam uma sardinhada, pretexto para encontro de amigos… Não pode faltar, também, a broa, o caldo verde, a salada com tomate e pimentos assados. Cada um chega a brasa à sua sardinha, escolhendo o que prefere. E mesmo que estejamos como “sardinha em lata”, joga-se à sardinha com os mais pequenos, enquanto se espera o pitéu… O paladar e aromas acentuados não admitem indiferença; ou se adora, ou se detesta.
Agora, tornou-se rara, a malandra… subiu na hierarquia social. Razões mais do que suficientes para se temer a quota agora atribuída a Portugal para a pesca da sardinha. Diz quem sabe que Marrocos, Espanha e França são já os primeiros fornecedores da nossa indústria conserveira. E se, antes, portugueses as pescavam às toneladas, a prestação atual é insuficiente até para o abastecimento público…
Esperemos que a Senhora Ministra da Agricultura e do Mar, e de Mais-Não-Sei-Quê, goste de sardinha e tome medidas para não deixar por mãos alheias o bendito peixinho. Sabemos que as traineiras já lá vão… são objeto de museu. Mas as latas de conservas de sardinha regressaram ao comércio com título enobrecido: hoje também são produto gourmet. Cada qual vale o que vale e a sardinha mostra assim sua raça, a sua graça. Era peixe amigo de estivadores que, nos anos 60, brindavam raparigas com o piropo: “Ai que sardinha tão fresquinha!” Então, a mulher e a sardinha queria-se da mais pequenina…
Rainha do verão, convidámos um dia, uma americana para almoçar. Pedimos sardinha. Manejávamos garfo e faca, como sabemos, a pele, as espinhas… Comentará a estadunidense, em tom de elogio, ainda que em português descaraterizado, amalgamado com o castelhano: “Vocês são autênticos cirurgianos” (cirurgiões, claro, mas a gramática portuguesa tem que se lhe diga, até na formação do plural). Ajudámos… O paladar impressionou divinamente… Explicou que em restaurantes americanos, todo o peixe chega ao prato, quase em pasta, sem espinhas… Não sabem o que desperdiçam, na demanda de bocadinhos de excelência que a busca minuciosa ensina e provoca.
Durante o mês de julho, a sardinha é uma farturinha, se o São Pedro ajuda à festa. As temperaturas têm de estar de feição para a celebração da festa deste peixinho sempre mais saboroso, se grelhado em carvão.
Conquista nacionais e estrangeiros; os últimos pedem sardinha – vá lá perceber-se tal opção – com batata frita, uma combinação de sabores excêntrica e mal-amanhada em termos lusos.
Cantava Amália Rodrigues: “Fui ao mar buscar sardinhas/ Para dar ao meu amor / Perdi-me nas janelinhas / Que espreitavam do vapor //. (…) Garantia: “Sardinha que anda no mar./ Deve andar consoladinha / Tem água, sabe nadar, / Quem me dera ser sardinha! //”.
E a fadista fadou o tema: “Quem é que não gosta /Quem é que não gosta / De uma sardinha /Salpicadinha da costa? /.”
Sabia que: “Quando se ouve o pregão / Vê-se logo a mesa posta / Comer à mão, como se gosta / Muito gordinha /No pão saloio a pingar /Uma buchinha / Prá sardinha não queimar.”
Por amor, decidiu: “Juntei uma petinguinha / Com um lindo jaquinzinho. / Ela assadinha, ele fritinho / O casamento naquele dia se fez /Foi o padrinho o verdinho português.//”
Ementa completa em festividades de Verão.
Nas novas roupagens de peixe nobre, tão prima da lagosta, a democrática sardinha, como a qualificava Aquilino Ribeiro, há de resistir a euros e políticas “mercadoidas”; ser fã de Santo António, São João, São Pedro e demais santos e santas de romarias que Portugal venera e o FMI desconhece, vai mantê-la fresquinha da costa… um pergaminho maior.